¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 31, 2005
 
DE MESLIER A PIERRE



Mulher e religião não se discute. Se abraça - me dizia o padre Carlos Pretto, de Santa Maria, com quem trabalhei em meus dias de JUC. Carismático, jovial, entusiasta, também costumava dizer: se batina fosse bronze, que badaladas! Isto ocorreu nos anos 60, quando a Ação Católica exerceu forte influência junto à juventude. Os padres mais novos desceram do púlpito, saíram do cubículo do confessionário e decidiram conversar com os jovens. Dos padres com quem convivi, nenhum escapou: todos largaram a batina. Hoje estão casados e cheios de filhos. O contato com aquela gente moça, com aquelas universitárias com hormônios à flor da pele, foi letal. Não houve ministro de Cristo que resistisse ao apelo do sexo.

Sexo é imperioso. Pau duro não tem amigo - costumava dizer meu velho pai, em seu linguajar sem peias de homem do campo. Nem fé, acrescentaria eu. Que o diga este santo homem, Henri Grouès, 93 anos, mais conhecido como abbé Pierre, fundador do movimento dos Emaús. Mais considerado na França que o jogador Zinedine Zidane - como diz Gilles Lapouge - o abade Pierre, que há 60 anos promove ações em favor dos pobres, é considerado um santo. No inverno de 1954, lançou um apelo à "insurreição pela bondade", em favor dos sem-teto, provocando um vasto movimento de solidariedade mundial. A associação dos Emaús se internacionalizou e hoje tem representações em cerca de 40 países. Em 1988, ele criou a Fundação Abbé Pierre, para abrigar habitantes de rua. Em 2001, recebeu da Presidência da República a comenda de Grand Officier de la Légion d?Honneur.

Em livro recentemente lançado na França, Mon Dieu... Pourquoi?, o abade famoso por sua vida virtuosa e sua luta pelos sem-teto, confessa serenamente ter tido não poucas relações sexuais em sua vida. O livro está provocando mais celeuma do que a entrevista concedida ao jornal Le Figaro, em novembro de 2000, por dois velhos generais franceses, Jacques Massu, 92 anos, e Paul Aussaresses, 82, quando resolveram confessar seus assassinatos e torturas durante a guerra na Argélia. Aussaresses contou, inclusive, ter matado 24 prisioneiros com as próprias mãos. "De fato, nos executávamos os prisioneiros. A tortura nunca me proporcionou prazer mas eu tomei esta decisão quando cheguei a Argel. Na época, ela era generalizada. Se fosse para refazer tudo, isso me aborreceria, mas eu faria de novo a mesma coisa pois não acho que se pudesse agir de outra maneira".

Se a tortura na Argélia era um segredo de polichinelo, o mesmo não se pode dizer da vida sexual do virtuoso abade. Mais ainda, abbé Pierre mexe nos rígidos princípios da Igreja. Declara que a tentação carnal é "uma força vital poderosa", afirma o caráter sexual das relações entre Cristo e Madalena e aprova o desejo dos casais homossexuais terem seu "amor" reconhecido. Em recente polêmica, quando afirmei ter abandonado minha fé cristã em boa parte por imperativos do baixo ventre, fui qualificado por leitores como um devasso. O mesmo não diriam estes leitores deste santo homem. Com a diferença que abbé Pierre não teve a hombridade de jogar fora os grilhões que o oprimiam como ser humano, e portanto, dotado de sexo. Não teve sequer a coragem de largar a batina e viveu até a velhice na hipocrisia, em oposição ao magistério da Igreja à qual devia obediência.

A affaire abbé Pierre evoca um outro personagem curioso da história da França, um religioso muito cultuado por ateus do mundo todo. Em 1729, morreu em Étrépigny, França, o abade Jean Meslier, com a idade de 65 anos. Ao morrer, após mais de quarenta anos à frente de sua paróquia, resolveu dizer o que pensava do cristianismo em um gordo livro, singelamente intitulado Mémoire dés pensées et dés sentiments de Jean Meslier, prêtre, curé d'Étrépigny et de Balaives, sur une partie des erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l?on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les religions du monde pour être adressé à ses paroissiens aprés sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité à eux, et à tous leurs semblables.

Meslier, que vivera uma pacata vida de cura de aldeia, uma vez morto se sente livre para expressar o que sempre pensara. E solta o verbo:

- De onde tiramos que um Deus que seria essencialmente imutável e imóvel por sua natureza poderia no entanto mover algum corpo? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma extensão nem parte alguma seria no entanto imenso, e mesmo infinitamente esparso por toda a parte? De onde tiramos que um ser que não teria cabeça nem cérebro seria no entanto infinitamente sábio e esclarecido? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma qualidade nem nenhuma perfeição sensíveis seria no entanto infinitamente bom, infinitamente amável e infinitamente perfeito? De onde tiramos que um ser que não teria nem braços nem pernas e que sequer seria capaz de mover-se seria no entanto todo-poderoso e faria verdadeiramente todas as coisas? Quem teve a experiência disto?

- Depois disso, que pensem, que julguem, que digam e que façam tudo o que quiserem no mundo, pouco estou me preocupando; que os homens se ajeitem e governem como eles quiserem, que sejam sensatos ou sejam loucos, que sejam bons ou que sejam maus, que digam ou que mesmo façam o que quiserem depois de minha morte; não me preocupo; eu já quase não faço parte do que se faz no mundo; os mortos com os quais estou prestes a juntar-me não se incomodam mais com nada, não se intrometem mais em nada, e não se preocupam mais com nada. Terminarei então isto pelo nada, também sou pouco mais que nada, e em breve não serei nada.

Liberto pela morte dos horrores da Inquisição, Meslier desafia seus pares:

- Que os padres, que os pregadores façam então de meu corpo tudo que eles queiram; que eles o rasguem, que o cortem em pedaços, que eles o assem ou façam dele um fricassé, e que mesmo o comam se quiserem, no molho que desejarem, eu absolutamente não me preocupo; eu estarei então totalmente fora de seu poder, nada mais será capaz de me fazer medo.

Dois abades, duas apostasias. Meslier, dada a época em que vivia, não podia falar em vida. Seria fatal para sua saúde. Não é o mesmo caso de abbé Pierre, que vive numa França laica, onde qualquer heresia é permissível. O criador do movimento dos Emaús preferiu levar vida dupla, usufruindo por um lado os privilégios de sua condição de religioso coberto pela fama, sem renunciar, por outro lado, aos prazeres da carne. Mas pelo menos tornou pública sua verdade, em oposição aos milhares de padres que exercem, às escondidas - o mais das vezes com meninos - suas sexualidades.

Ao abbé Pierre, minha compreensão. A Meslier, admiração profunda.