¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 24, 2005
 
EU, APÓSTATA




"O sr. Cristaldo nos cansa com seu ódio a Deus - escreve um leitor, a respeito de minha penúltima crônica - "motivado, segundo ele mesmo, pelo amor do baixo-ventre. Ninguém lhe nega o direito de ser ateu; porém 99 % da população não o é, e se ele é mesmo democrata, como diz, deveria respeitar o direito de expressão da maioria e guardar a sua crença para uso privado, como quer que todos façam".

Nos últimos meses, a contragosto, escrevi várias crônicas contra o PT e sua política corruptora. Não que me agrade escrever sobre o PT, mas as circunstâncias o exigem. Recebi um bombardeio de mails querendo saber as razões de meu ódio ao PT. No que não há nada de insólito. Sempre que o PT recebe críticas, lá vêm seus próceres querendo saber: por que tanto ódio?

Mudei de assunto, afinal detesto escrever sobre o PT. Escrevi sobre o Islã e seu avanço na Europa. Falei da ablação do clitóris, infibulação da vagina, uso obrigatório do véu. Não faltou islamita ou simpatizante que quisesse saber porque odeio tanto o Islã. Ora, jamais nutri ódio algum pelo Islã. O que não impede que critique suas práticas bárbaras.

Mudei de novo de assunto. Estava em discussão a proposição do juiz gaúcho Roberto Arriada Lorea, de retirar os crucifixos das salas de audiências e de julgamentos nos fóruns e no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Teci minhas considerações sobre a cruz, que de instrumento de tortura romano é transformado, em um passe de mágica, em símbolo da propaganda cristã. (Mais ou menos o que fez o PT com seus líderes: de traidores da pátria os transformou em heróis). Não passaram 24 horas para que ressurgisse a cantilena: por que tanto ódio a Deus?

Há mais de ano, escrevi crônica criticando o absurdo do reconhecimento pelo Ministério da Educação de uma Faculdade de Teologia Umbandista. Até hoje umbandistas querem saber porque odeio tanto a umbanda.

Ou seja, crítica não é mais crítica. É ódio. Tudo que não for louvor, é desqualificado. Se você tenta analisar com olhos independentes, sem parti pris, fenômenos que dependem de fé, você não é um analista. E sim um crápula destilando ódio pelos poros. Esta retórica pode funcionar para claques de crentes ofendidos. É a resposta mais à mão de quem não tem resposta alguma. Mas não comigo. Para começar, eu jamais poderia odiar a Deus, afinal não consigo odiar o que não existe. Poderia odiar talvez os homens que massacravam e queimavam seres humanos, tanto no Antigo Testamento como na Inquisição ou nas Cruzadas, sempre em nome de Deus. Mas ódio retroativo também não existe.

Que mais não seja, ódio é sentimento que jamais consegui alimentar. Não odeio ninguém. Critico, isto sim, o que está atrás de logotipos como cruzes, crescentes, foices e martelos, suásticas. São doutrinas totalitárias, que tentam anular o indivíduo e sua liberdade. Neste sentido, a cruz é mais nefasta que a suástica e a foice e o martelo. A suástica imperou por pouco mais de década, a foice e o martelo tem coisa de um século, mas enquanto símbolo de um poder vigente, durou apenas setenta anos. A cruz tem vinte séculos de existência. Combato a cruz porque nasci sob sua sombra. Nascesse no mundo árabe, certamente estaria combatendo o crescente. Vivesse em mundo comunista, estaria terçando armas contra a foice e o martelo.

Mas em algo o leitor tem razão. Minha negação de Deus decorre em boa parte de meu amor ao baixo ventre. Uma das razões que me levou a questionar o cristianismo foram as proibições ao sexo. Os padres armaram uma maquininha diabólica de tortura em minha mente: a cada momento de prazer, fui condicionado a acionar a maquininha, o que me provocava dolorosos sentimentos de culpa e desejos de punição. A carne é fraca, diziam meus professores. Ora, era exatamente o contrário. A carne era forte, e como! Eu não conseguia admitir que o prazer sexual, um dos mais intensos que é dado ao ser humano, pudesse ser algo criminoso ou pecaminoso. Como cachorro que se sacode para secar-se, joguei para longe de mim minha crença. Não vi mais razões para punir-me a cada momento de prazer. Joguei fora também a maquininha de tortura e me dediquei a tratar com muito carinho meu baixo ventre. E com sofreguidão, afinal precisava recuperar o tempo perdido. Meu caluniado baixo ventre passou a proporcionar-me não mais sentimentos de culpa, mas momentos de puro prazer e glória.

Um outro leitor empunha Tomás de Aquino, aquele senhor que discutia seriamente a que distância um anjo deve estar do outro, para que quando um fale o outro ouça. Segundo o aquinata, "é pecado o ato humano contrário à ordem da razão. Ora, a ordem racional exige que tudo se ordene convenientemente para o fim. Logo, não há pecado quando racionalmente o homem usa de certas coisas, de acordo com o fim para o qual existem, de modo e em ordem convenientes, contanto que esse fim seja verdadeiramente bom".

Para início de conversa, falar de pecado para mim é como falar de livros para o Lula: não me diz nada. Ateu, sou homem sem pecados, pois não aceito a noção de pecado. Quanto ao fim para o qual certas coisas existem, sem dúvida alguma a procriação é um dos fins da sexualidade. O outro é o prazer. Eu, que sou avesso à procriação, fico com este último. Ordem da razão, para mim, é tudo que se ordena convenientemente para o prazer. Para os católicos, curiosamente, a tal de ordem da razão sempre coincide com a doutrina da Igreja.


Dom Lourenço Fleichman, OSB, em duas frases comete uma série de equívocos: Cristaldo "só pensa em Deus, só fala de Deus, mas sempre com o sinal negativo. Onde esse mesmo Deus fala de Amor, Cristaldo distila (sic!) o ódio. Onde Deus fala da Verdade, Cristaldo prefere a duplicidade religiosa. Hoje, Cristaldo cospe na Cruz de Nosso Senhor e enaltece outras religiões para contrapor ao catolicismo. Mas não deixa de dormir por ontem ter cuspido nessas mesmas religiões que hoje utiliza contra Cristo". Ora, raras vezes escrevo sobre Deus, e se desta vez escrevi, foi para comentar a polêmica em torno à cruz. Mais uma vez, o frei empunha o argumento do ódio, esse argumento tão ao gosto do PT quando se sente criticado. Diz ainda o frei que enalteço outras religiões para contrapor ao catolicismo. Pelo jeito, o frei não costuma ler meus artigos. Nunca enalteci religião alguma. Abomino-as todas.

"Porque não cita os documentos papais ordenando a tortura, a fogueira? - pergunta Dom Lourenço. - "Porque não cita algum livro, alguma frase tirada da boca dos santos católicos determinando que se mate para espalhar o cristianismo?" Ora, já os citei sobejamente em crônicas anteriores. A começar pela Bíblia, onde Jeová, além de exterminar a vida na terra - salvando Noé e seu zoo - incita a todo momento o povo eleito a exterminar seus inimigos. As passagens do Livro ordenando o massacre e o genocídio são inúmeras e citá-las seria monótono. A Inquisição é criada pela bula Licet ad Capiendos, do Papa Gregório IX, em 20 de abril de 1233. Com a bula Ad Extirpanda, em 1252, o Papa Inocêncio IV institucionaliza o Tribunal da Inquisição e autoriza o uso da tortura. Irá persistir até o século XIX, na Espanha.

Com o Directorium Inquisitorum - ou Manual dos Inquisidores, em bom português - de 1578, do frei dominicano Nicolau Eymerich e ampliado pelo também frei dominicano Francisco de la Peña, são definidas juridicamente as circunstâncias da tortura. Tal defesa da tortura, feita em documento escrito, nem nazistas ou comunistas ousaram produzir. Isso sem falar no Malleus Maleficarum, dos monges dominicanos Jacobus Sprenger e Heinrich Kramer, de 1486, que se tornou o manual indispensável e autoridade final da Inquisição, para todos os juízes, magistrados e sacerdotes, católicos e protestantes, na luta contra a bruxaria na Europa. Os documentos são muitos. Se Dom Lourenço quiser mais detalhes, eu o remeto à Historia Criminal del Cristianismo, de Karlheinz Deschner, 10 volumes, Barcelona, Ediciones Martinez Roca, S.A.

"O aborto, o divórcio, o casamento de homossexuais não é proibido pela Igreja, como pensa Cristaldo. É proibido pela natureza do homem e da sociedade humana" - prossegue Dom Lourenço. Pelo que me consta, a tal de natureza humana até hoje não baixou bula proibindo tais práticas. Quanto à sociedade humana, esta desde há muito vem produzindo leis que descriminalizam o aborto, o divórcio e o casamento de homossexuais. Aliás, homossexualismo é a busca de puro prazer, não maculado pelos acidentes da concepção. Ou alguém pretende que não haja prazer no homossexualismo? Se é bom e não prejudica ninguém, que mal tem?

Nestas catilinárias, não faltou quem fizesse a pergunta safada: quando você se tornou ateu? A formulação é capciosa. Não nos tornamos ateus. Nós nascemos ateus. A educação é que nos insere no espírito a idéia de Deus. A formulação correta seria: quando você voltou a ser ateu? Bom, em meu caso, foi lendo a Bíblia. Eu, que dela só conhecia trechos, a li livro a livro, versículo a versículo. Terminada a leitura, minha fé implantada a machado pela escola ruiu como um castelo de cartas. Aquele deus genocida, vingativo e cruel, aqueles capítulos incongruentes, aquelas narrações contraditórias, aquele livro que dizia tudo e seu contrário, aquilo não podia passar de humana ficção.

"Rezo a Deus para que no dia da sua morte ele já não deseje mais, como escreveu, um triste velório sem Deus, sem Cristo, sem a Santa Esperança" - me deseja Dom Lourenço. Vamos devagar, caríssimo. Ou você pretende impedir um homem de morrer como lhe agrada? Desde meus verdes anos, dispensei Deus, Cristo e tal de Santa Esperança. Foi um renascer. Desde então, tenho vivido meus dias em plena paz, comigo e com meus sentidos.

Fui ainda jogado no ror dos ateus militantes. Não se preocupem os senhores crentes. Já fui até convidado para participar de fóruns de ateus militantes, e recusei. O ateu militante é um pobre diabo, que está doidinho para encontrar um Deus, seja lá qual for. Não sou militante de doutrina alguma. Não convido ninguém a partilhar de minhas convicções. Ateísmo é postura de fortes, de homens que não choramingam como carpideiras diante da morte.

Espíritos frágeis, melhor se abster.