¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 17, 2005
 
"EU NÃO VIM TRAZER PAZ,
MAS ESPADA"




O Brasil é um país curioso. Você é tributado para garantir sua assistência médica... e tem de pagar mais um seguro de saúde privado se quiser de fato garanti-la. Você paga impostos para garantir educação pública... e tem de pagar educação privada, se tiver algum apreço pela educação de seus filhos. Você paga caro ao Estado pela sua segurança... e tem de pagar mais caro ainda a serviços privados de segurança, se quiser viver em segurança. Há muito venho defendendo a tese de que sonegação fiscal, nestas circunstâncias, é um dever cívico. Ao pagar impostos, você está apenas alimentando uma cadeia incomensurável de corruptos, que cobram por fora até mesmo para votar leis, leis que geralmente visam escorchar o contribuinte ainda mais. Esta generosa cadeia alimentar começa com gordos mensalões a deputados em Brasília e vai se diluindo em mensalinhos nas instâncias inferiores. O que importa, para o bem-estar geral do poder, é que todos seus acólitos sejam bem alimentados.

Domingo que vem, o governo propõe à nação uma farsa monumental, montada para disfarçar sua incapacidade de garantir aos cidadãos segurança, o referendo sobre comercialização de armas no país. Com a última pesquisa do Ibope, segundo a qual 49% dos entrevistados disse não à proibição da comercialização e apenas 45% disseram sim, os luminares responsáveis pela consulta já estão intuindo que esta idéia pode resultar em gol contra. Como besteira atrai besteira, já estão planejando uma segunda: intensificar a propaganda a favor do sim à proibição. Depois que Lula chegou ao poder graças à marquetagem de Duda Mendonça, o PT passou a considerar toda decisão popular uma questão de propaganda. Mas parece que nem mesmo os tais de artistas - venais como todos os dependentes de mecenato - estão conseguindo convencer os eleitores das razões do governo. Estima-se em 500 milhões de reais o custo desta consulta, que seriam muito melhor empregados em segurança para a população. É uma consulta exótica: pergunta-se ao cidadão se ele quer renunciar a um direito sagrado, o direito à legítima defesa, aliás uma das cláusulas pétreas da Constituição. Sem armas, como defender-se? A tapas?

É também uma consulta estúpida: se se proíbe a comercialização de armas no país, nada impede que quem quer armas as traga do exterior. (Como se fazia nos dias de reserva informática. Os computadores brasileiros eram caros e vagabundos? Bastava um telefonema para o Paraguai e no outro dia você recebia, em casa, uma boa máquina a bom preço). Tampouco impede, por exemplo, que eu dê armas de presente a um amigo. Ou a meus clientes: você compra um caniço e leva um fuzil de brinde. Até aí, não houve comercialização. No fundo, o governo está jogando ao lixo 500 milhões para decidir qual seja o sexo dos anjos.

Tenho recebido um bombardeio de mails, com textos e declarações pró e contra a proposta do governo. Curioso observar que a maioria trata o referendo como uma discussão sobre desarmamento, quando em verdade se discute a comercialização de armas. O desarmamento, em verdade, já foi efetuado pela lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Nos mails que recebo, besteiras e sofismas dos dois lados.

Os defensores do livre comércio de armas alegam que a proibição das mesmas é típica de governos totalitários, que querem desarmar a população para mantê-la indefesa ante os abusos do poder. Tem-se a impressão de que os brasileiros, se armados estivessem, reagiriam energicamente ante tais abusos. Ora, vivemos em um país em que o governo escorcha o contribuinte com impostos abusivos, compra deputados sistematicamente para impingir seu arbítrio, enfia a mão no bolso dos aposentados, mediante medidas flagrantemente inconstitucionais, tudo isto para fazer a fortuna de seus áulicos e familiares.

Vivemos em plena cleptocracia, administrada por um ex-operário malandro e analfabeto. Qual a reação dos cidadãos? Lula ainda continua com chances de reeleição em 2006. Povo vil não precisa ser desarmado para manter-se dócil ao poder. Basta um esmolinha mensal para comprar seu voto. Povo culto é outra coisa: por um mero imposto sobre o chá, os colonos norte-americanos declararam sua independência.

Um dos argumentos mais falaciosos empunhados pelos defensores da proibição foi repetido, na Folha de São Paulo de ontem, por Dalmo Dallari: "onde o comércio de armas é absolutamente livre, dando aos cidadãos toda a possibilidade de autodefesa, o número de crimes contra a pessoa e o patrimônio é muito alto". Parece que o ilustre e renomado jurista nunca ouviu falar da Suíça, onde o porte e a compra de armas são livres e onde cada cidadão guarda em casa a arma regulamentar do Exército. Índice de homicídios: uma morte a cada 100 mil suíços. No Brasil, onde as restrições a porte de armas já são severas, este índice é de 29 por 100 mil habitantes.

Mas o prêmio de maior ridículo talvez caiba aos diferentes grupos religiosos do país, que defendem o voto pelo sim à proibição de armas, sempre ostentando a bandeira da paz. "Nossa participação não foi só na coleta de armas, mas também visa à conscientização das pessoas de que é preciso desarmar-se também dos pensamentos belicosos, que precisamos promover a construção da cultura da paz", afirmou ontem o pastor Ervino Schmidt, secretário-executivo do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Entre os mails que recebi destas facções, alega-se que a paz de Cristo não combina com armas, afinal Cristo mandou Pedro embainhar sua espada, quando este cortou a orelha do servo do sumo sacerdote. Esquecem estes senhores - ou propositadamente omitem - que foi o mesmo Cristo quem disse: "Não penseis que eu vim trazer a paz sobre a terra. Eu não vim trazer paz, mas espada". Disse ainda a seus discípulos: "quem não tiver espada, venda o seu manto e compre-a". Curiosamente, estas passagens de um Cristo belicoso, que defende enfaticamente o uso das armas, não foi aproveitada pelos defensores do não.

O Estadão de ontem houve por bem entrevistar quem realmente entende de armas, os assaltantes. Algumas respostas de oito acusados de assaltos à mão armada:

- Quando é para roubar, rouba. Se ladrão tivesse medo, não roubaria carro-forte. Não tem tanta gente armada dentro e assaltam do mesmo jeito? - disse um rapaz de 25 anos, preso por roubo.
- Se fosse eu, não confiava nisso de que arma defende cidadão - disse um outro -. Se souber que tem arma, já fico preparado. Qualquer movimento da vítima você pensa que ela vai pegar a arma e fica mais fácil assassinar a pessoa. Não que a gente queira, mas você sabe, né? É o mesmo que roubar policial. Sabendo que tá armado, você atira. Porque ele atira pra matar.
- Quem saca primeiro é o dono da festa - diz Rafael, de 23, também condenado por tráfico. Para ele, com o fator surpresa, é difícil ladrão levar a pior. Vítima armada intimida? - Não tenho medo de nada. Só de Deus que, quando põe a mão, é profundo.
- Se a vítima atirar, tem mais três ou quatro guerreiros para segurar - diz João, 37 anos.

Ou seja: com armas ou sem armas, o cidadão continuará desprotegido e mal pago. Minha posição ante essa pergunta idiota? Apesar de minhas sérias desavenças com este cavalheiro, fico com o Cristo.