¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 15, 2005
 
WIKIPEDIA: RESPOSTA DO MANUEL



Caro amigo:

Com certeza que já recebeu mais mails de outros wikipediófilos indignados com a sua crónica sobre o que ela "não conta". Com certeza que assuntos sobre religião e ideologia terão dificuldade em atingir um nível aceitável. O que o senhor propõe (como propõem outros, mas de outro lado da barricada) é apresentar as suas opiniões sobre os assuntos que referiu. Já tentei imparcializar textos sobre religião na wikipédia e é muito difícil - existem sempre defensores e detractores a quererem impor a sua visão próprio do que seja ou não um facto. Ora, a wikipédia pretende que esses assuntos sejam apresentados de forma objectiva e não laudatória ou difamatória (apresentam-se os factos e os leitores que tirem as suas opiniões). Claro que poderá considerar isso utópico. Eu diria mesmo que o é. A wikipédia é uma utopia, não tenha dúvidas, mas por enquanto é apenas uma semente - e, não sei se sabe, as sementes encerram um embrião em que muito dificilmente se descortina a planta (a árvore, por que não?) que será no futuro...

O que muito me agrada na sua crónica é que pessoas como o senhor já se dão ao trabalho de criticar algo que ainda está a um nível tão incipiente como se fosse um projecto em estado avançado (e pode crer que aqueles que nela trabalham, como eu, somos os primeiros a constatar os erros e falhas que existem nela e a desesperar perante o baixo nível de alguns artigos - mas somos um projecto ainda em fase muito inicial!!! Uma enciclopédia típica leva décadas a fazer, e nós temos poucos anos de idade - mal sabemos ainda caminhar - mas já exigem de nós aquilo que se exige a um adulto...). Os artigos que referiu são também uma semente com um futuro problemático pela frente. Se alguém colocar lá alguma informação com que outro wikipedista não concorda (e isso é frequente em artigos de política, ideologia ou religião), existe uma página de discussão. Essas discussões, acesas e, por vezes, até mesmo de baixo nível, mostram como é difícil definir realmente o que são factos. Essas páginas necessitarão de mil e uma decisões até que um único parágrafo agrade a gregos e troianos... É um trabalho árduo, pode crer, mas só chegará a dar frutos se as pessoas participarem nessas discussões e edições (e não limitando-se a dizer: que porcaria de artigo...). Claro que o senhor escreve um artigo ou uma crónica e apresenta o que quer como sendo verdade irrefutável - e ninguém poderá alterar o seu conteúdo. Nesse caso, o seu texto terá o valor de algo petrificado no tempo - algo como um artigo de Enciclopédia escrito por Diderot... Será uma peça de literatura.

Infelizmente, creio que os lusófonos em geral não estão habituados a procurar a objectividade. Somos ainda muito opinativos e confundimos opiniões com factos. As discussões na wikipédia são claras a esse respeito - e os artigos de religião são particularmente sensíveis. Vem alguém e escreve um texto em que demoniza Osho, vem outro, apaga tudo e passa a louvá-lo, vem outro e tenta conciliar as duas visões. As duas primeiras partes, por sua vez, passam a criticar essa tentativa de conciliar duas visões opostas. Tenta-se esclarecer o que é de facto um facto. Discutem-se palavras. Entra-se em guerras de edições: um põe, o outro tira, sucessivamente... Por vezes, alguém se rebela com "esse desastre" de wikipédia... E tudo porquê? Porque não sabemos dialogar. Estamos habituados a escrever para jornais com uma determinada orientação política, ideológica, religiosa... Ora, nesse caso é fácil estabelecer verdades. Tenho uma enciclopédia em casa, muito conceituada aqui em Portugal, como se fosse a Britânica cá da casa... E sabe uma coisa: envergonha-me a parcialidade de alguns artigos sobre política. Alguns ainda apresentam a visão oficial do regime ditatorial que vigorava durante a primeira edição dessa enciclopédia. Os artigos de religião apresentam apenas as coisas do ponto de vista católico: o artigo sobre a Inquisição chega a apontar as vantagens e benefícios do sistema inquisitorial!!!! E alguém se lembra de criticar esses artigos? Não... Está escrito numa enciclopédia "séria", é porque é verdade.

A wikipédia vem alertar para esse problema da confiabilidade dos textos. Eu sou professor e vejo muita gente (professores e alunos) a usar já a Wikipédia como fonte bibliográfica. E sou o primeiro a informá-los que devem ter cuidado... Mas não passo, como o senhor fez, a depreciar aquela que é uma das mais belas promessas da internet (e está na mão da humanidade inteira que sejam aqueles que valorizam o conhecimento a vencerem a batalha num projecto que pretende, desde o início, ser património da humanidade, de todos, para todos - generosidade pura!!! Infelizmente há aqueles que desejam lutar do outro lado e que tentam por todos os meios provar que a generosidade é apenas própria dos "babacas").

A Wikipédia é um conceito totalmente novo e que precisa de ser abordada de uma forma diferente. Primeiro: não é planeada desde o início - cresce conforme a vontade dos seus utilizadores. Enquanto que alguns utilizadores têm noção das prioridades de uma enciclopédia, outros preferem fazer artigos de pouca relevância cultural ou científica. Isso poderá ter como consequência uma enciclopédia desequilibrada em termos de conteúdos. E é o que se verifica actualmente. A wikipédia em português ainda está longe de um patamar aceitável em termos de qualidade, mas há que dar tempo ao tempo. Mas existem alguns colaboradores (aqueles que têm também uma maior consciência daquilo que deve ser uma enciclopédia) que mantêm uma luta constante para elevar o nível intelectual dos conteúdos da wikipédia, que investigam aturadamente os mais diversos assuntos; que propõem para eliminação artigos que não têm qualquer relevância para uma enciclopédia (e que até a podem desacreditar - aliás, existem muitos provocadores e vandalismos propositados de pessoas que apenas querem demonstrar que a wikipédia é um sonho sem futuro). Mas existe a possibilidade de que o trabalho conjunto de muitos amadores (apaixonados no projecto) consiga ultrapassar o trabalho de uma enciclopédia tradicional - afinal, se uma enciclopédia é feita para o cidadão comum, a pensar no conhecimento científico numa perspectiva de divulgação, por que razão é que se deve julgar que os artigos têm de ser escritos pelos próprios cientistas? Muita gente diz: na Britannica foi o próprio Freud que escreveu o artigo sobre psicanálise - e julgam que isso dá mais autoridade a essa enciclopédia - mas não dá, pelo contrário: Freud seria a pessoa menos capacitada para escrever um artigo sobre psicanálise porque era o próprio Pai dela (e quem é que vai apontar os defeitos e fraquezas de um filho?). A wikipédia, ao ser feita por gente comum, promove o cruzamento de saberes e de pontos de vista, de forma a criar artigos que não têm uma assinatura individual, mas que são fruto de um autor colectivo que, de um ponto de vista ideal, poderia ser a própria humanidade. Mas, como disse, isso será um processo lento e cheio de percalços.

Por enquanto, é arriscado utilizar a wikipédia como fonte bibliográfica. A wikipédia deve ser, sim, utilizada como um guia (como um amigo que pode errar, mas que nos pode dar pistas na nossa pesquisa). Se alguém fizer um trabalho e apenas encontrar informação sobre esse assunto na wikipédia (o que já acontece para alguns assuntos - espécies biológicas ou biografias para as quais não existia qualquer conteúdo em português na internet, passaram a tê-lo depois da criação da wikipédia) tem de ter a consciência que essa informação pode ter sido inserida de forma mal intencionada e conter erros mais ou menos sutis (a revista Veja inseriu um erro sutil na biografia do presidente Lula, difícil de ser detectado - esse género de erro pode manter-se na wikipédia por muito tempo - quando esperavam que alguém detectasse o erro em menos de vinte e quatro horas!). Mas aí é que entra o grande valor da wikipédia como meio de ensino e de aprendizagem: a Wikipédia, nesta sua fase de desenvolvimento pode ser utilizada nas escolas mais como o trabalho escolar em si do que como fonte bibliográfica. Os alunos, orientados por um professor que perceba a lógica enciclopédica da wikipédia (alguém que ajude a explicar aos alunos como deve ser o título de um artigo, qual o conteúdo que é aceitável ou não - incluindo violações de direitos de autor, que têm de ser expurgadas, bem como textos tendenciosos e opinativos). Há algum tempo, notou-se que um professor universitário brasileiro envolveu alguns alunos na criação de artigos na wikipédia. Isso teria sido bom se os alunos fossem consciencializados de que deveriam ouvir as críticas da comunidade e ajustar os textos e conteúdos às diretivas da wikipédia. O que aconteceu foi que esses alunos (sem qualquer orientação do professor que os enviou para a wikipédia) começaram a inserir textos plagiados (prática muito comum nos trabalhos académicos, tanto em Portugal como no Brasil, não tenhamos dúvidas) cheios de opiniões pessoais. Ora, a mais valia da wikipédia está mesmo na possibilidade educativa da criação conjunta, orientada por princípios definidos pela própria comunidade. Assim, um aluno pode reflectir na diferença entre factos e opiniões (coisa para a qual a escola nem sempre educa); pode reflectir no que significa objectividade, no que significa trabalho colectivo, além de aprender com os seus próprios erros, corrigidos ou comentados por outras pessoas (muitas vezes, há anónimos que conseguem detectar erros que os próprios professores universitários não são capazes de detectar - até porque muitas vezes falta essa capacidade de olhar para a globalidade das coisas a quem está habituado apenas a aprofundar apenas um aspecto das questões, como acontece a muitos cientistas). Um aluno, na wikipédia, pode também ter a possibilidade de valorizar aquilo em que é realmente bom. Imaginemos que esse aluno percebe muito de física mas escreve com muitos erros ortográficos: ao publicar um artigo na wikipédia, não receberá uma má nota da comunidade apenas porque comete esse género de erros - a comunidade valorizará o conteúdo científico e corrigirá (mais cedo ou mais tarde) os erros ortográficos - cada um dá aquilo que de melhor pode dar. Por isso, sintetizo a minha opinião, dizendo que, no estado actual, a wikipédia vale como instrumento pedagógico de escrita e criação, não tanto como meio de consulta.

Contudo, creio que, no futuro, será possível criar duas páginas para cada artigo na wikipédia: uma página de trabalho, sujeita a melhoramentos (ou a vandalismos, claro), que nunca deverá ser utilizada como fonte bibliográfica; e uma página protegida, fixa e revisada que já poderá ser utilizada como fonte bibliográfica. Mas isso não é para já (nem para um futuro próximo). E ainda se discute o processo de "revisão".

Mais uma achega: apesar de os artigos da wikipédia não terem actualmente validade como fonte bibliográfica, por não serem revisados não implica que os mesmos não sejam usados por outros autores que os publiquem, revisados e numa forma fixa, noutro local da internet. A wikipédia é a semente - cabe a toda a gente semear, depois, por outros sítios. A wikipédia tem o desejo de se disseminar e de criar frutos para além dela. Os detractores da wikipédia esquecem-se desse pormenor: as pessoas podem utilizar livremente os conteúdos da wikipédia para criarem sites, livros ou outros, revisados e não sujeitos à degradação e vandalismo por parte de pessoas mal intecionadas - desde que os conteúdos mantenham uma licença compatível com o GFDL, claro.

Agradecia que me respondesse, nem que fosse por meia dúzia de palavras (nem que seja a dizer: li as suas balelas, mas tenho mais que fazer do que lhe dar atenção). Terei gosto em discutir o projecto, contudo, se estiver interessado.

Atenciosamente,

Manuel Anastácio