¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 30, 2006
 
A EFICÁCIA DO TERROR



Quinta-feira passada, a Folha de São Paulo noticiava em manchete:

FATAH VENCE HAMAS POR PEQUENA MARGEM

A linha fina era um pouco mais cautelosa:

Coligações do partido de Abbas podem deixar o grupo terrorista na oposição; projeção dá 100% de Gaza ao Hamas

Na sexta-feira, o jornal anunciava em primeira página:

HAMAS VENCE ELEIÇÕES PALESTINAS

Diz o texto da primeira página: "O Movimento de Resistência Islâmica (Hamas), organização terrorista que cometeu atentados suicidas contra civis de Israel, obteve surpreendente e histórica vitória nas eleições legislativas palestinas. O resultado contrariou as pesquisas ao longo da campanha e as de boca-de-urna".

E contrariou também o wishful thinking da Folha. Vou à coluna onde o jornal se penitencia de seus lapsos: nenhuma notinha. O editor de "Erramos" é tão meticuloso que chega a corrigir até mesmo um pequeno erro de digitação: "A área do lago Lucerna (região central da Suíça) é de 114 km2, e não de 114 m2, como publicado à pág. D8 (Esporte) em 16 de janeiro". Mas nada sobre a tremenda barriga do dia anterior.

Esse whisful thinking tem feito a Folha pagar não poucas gafes. Quando a URSS estava desmoronando, o editor de Internacional, que ainda não perdoara Ieltsin por aquele canhonaço na Duma, mal Ieltsin deu um chá de sumiço, mancheteou, com um raio de esperança:

GOLPE DERRUBA IELTSIN

Só que a manchete não se sustentou nem 24 horas. No dia seguinte, para salvar a cara, a Folha titulou:

IELTSIN DERRUBA GOLPE

Nenhum "Erramos". O "Erramos" é para redatores que cometem um lapso menor. Quando o editor entra em choque com a realidade, caluda! Volto à Palestina. O Estado de São Paulo também embarcou na canoa furada. Na edição de quinta-feira, temos na primeira página:

FATAH VENCE HAMAS E BUSCARÁ COALIZÃO

No texto, uma colher de chá para o Hamas, mas não a vitória: "A forte votação obtida pelo movimento fundamentalista islâmico Hamas, na eleição parlamentar de ontem, mudará significativamente o panorama político na Autoridade Palestina. O partido no poder, a Fatah, manteve a supremacia, mas terá de formar coalizão com grupos minoritários laicos para não ter de recorrer ao Hamas. A julgar pela boca-de-urna, a Fatah vencerá por 42% a 35%".

A julgar pela boca-de-urna, diz o texto. Mas para o redator de primeira página, que é sempre um jornalista de alto nível e muito bem-remunerado, não há dúvidas: o Fatah venceu. Todos os demais redatores têm de dançar conforme a música. A correspondente Daniela Kresch, que está em Ramallah, no centro dos acontecimentos, escreve:

"O partido no poder, a Fatah, parece ter vencido com um número suficiente de votos para formar um governo de coalizão com grupos minoritários laicos, com os quais tem afinidades políticas, sem precisar recorrer ao Hamas, seu principal rival". Reali Júnior, fiel cão de guarda do jornal, pergunta a Mahmud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina: "A Fatah está disposta a uma divisão do poder com o Hamas?"

Dia seguinte, sem o menor pudor, e sem pedido algum de desculpas ao leitor, o jornal mancheteia em primeira página:

HAMAS SURPEENDE E VENCE ELEIÇÃO PALESTINA

Ou seja, os jornalistas se deixaram levar pela pesquisa boca-de-urna e afirmaram o que não podiam afirmar. Impelidos pelo fato de que seus jornais já haviam decidido que o Hamas era um movimento terrorista, foram movidos pelo secreto desejo de não ter de noticiar a tomada do poder pelo terror. Ocorre que a realidade não está nem aí para secretos desejos. As recentes eleições na Palestina mostram que a via democrática ocidental não consegue impedir que organizações absolutamente antidemocráticas assumam as rédeas de um Estado. Como disse Bassem Eid, diretor-executivo do Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos: "O povão sempre é atraído pela coisa dogmática, pelo apelo emocional da religião, deixando de lado a razão, o racionalismo e a ciência".

Dois mil e trezentos anos antes, Platão já analisava o resultado das atuais eleições palestinas: "a massa popular (hoi polloi) é assimilável por natureza a um animal escravo de suas paixões e seus interesses passageiros, sensível à adulação, sem constância em seus amores e ódios; confiar-lhe o poder é aceitar a tirania de um ser incapaz da menor reflexão e rigor". Brasileiros, acabamos de ver este filme.

Os homens-bomba do Hamas chegaram ao controle do Estado, ou disso que eufemisticamente se chama Autoridade Nacional Palestina. Pois a ANP nasceu com vocação para Estado, é só ingênuos - ou demagogos - não viam esta tendência. O IRA e o Sinn Fein, que já optaram pelo desarmamento, devem estar se arrancando os cabelos. O ETA, que começava a pensar em paz, talvez pense mais um pouco antes de tomar qualquer decisão. Não é a primeira vez que o terror conquista votos. Os atentados aos trens em Madri, que mataram 198 pessoas em março de 2004, provocaram uma reviravolta de última hora nas últimas eleições espanholas. O resultado destas eleições no Oriente Médio será um poderoso estímulo às carnificinas da Al Qaeda.

"Não há diálogo se o Hamas não reconhecer Israel", diz Ehud Olmert , o primeiro-ministro interino de Israel. Seu país não fará contato com os palestinos até que o Hamas renuncie explicitamente ao caminho do terrorismo e reconheça Israel e todos os acordos assinados entre ambas as partes. O Hamas, não só não renuncia ao terrorismo, como acha que Israel deve ser exterminado do mapa. Já fala na construção de um Exército, vocação natural da polícia palestina. Israel não aceita um Exército na Palestina. O cenário está preparado para uma guerra ainda mais sangrenta.

Os palestinos tiveram de escolher entre a corrupção generalizada do Fatah e a mescla de homens-bomba e assistencialismo do Hamas. Democracia na Palestina não consegue fugir desta opção. O Ocidente tenta exportar seus valores ao mundo muçulmano. Esquece que, para existir democracia, é necessário antes educar o ser humano para a democracia. E que Islã é incompatível com democracia. Teocracias são inimigas da liberdade. A Europa só chegou à democracia após a Igreja ter renunciado ao poder temporal.

As eleições na Palestina nos deixam uma trágica lição. O terror pode não ser um meio legítimo para se chegar ao poder. Mas é eficaz. Dias piores virão.