¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 09, 2006
 
QUEM TRAIU QUEM?



Justo no dia em que o presidente da CPI dos Correios, o senador petista Delcídio Amaral entrou com duas representações contra o deputado, também petista, Jorge Bittar, por ter sido chamado de Judas e traidor, entre outras delicadezas, as agências internacionais anunciaram a publicação, nos Estados Unidos, da tradução de mais um evangelho apócrifo, denominado O Evangelho de Judas. O texto original teria sido escrito há 17 séculos e está em copta, língua falada pelos egípcios no começo da era cristã. Segundo um dos especialistas que examinam o documento, ele seria por sua vez tradução de um original grego da metade do século II D.C.

Na esteira de bestsellers tipo O Código da Vinci, os jornais do mundo todo estão anunciando uma suposta novidade, a de que Judas teria um papel fundamental na lenda cristã da História da Salvação. Digo suposta novidade, pois todo leitor atento dos Evangelhos percebe que, sem Judas, nem a crucificação nem o suposto sacrifício do Cristo pela redenção dos pecadores teriam sentido. Sacrifício que a parte interessada - os pecadores - jamais pediu. Pode-se até falar em traidor, mas a traição era imprescindível no projeto divino.

Segundo o recém-traduzido evangelho, enquanto os outros apóstolos são retratados como obtusos e incapazes de compreender o sacrifício de Cristo, Judas recebe instruções secretas e a ordem para trair Jesus. "Mas a todos excederás. Porque tu sacrificarás o homem que me reveste", diz Cristo no texto. Se Judas recebeu ordens do deus emergente para traí-lo e as cumpriu, não mais podemos considerá-lo como traidor e sim como santo. A representação do senador Delcídio, pelo menos no que a Judas se refere, fica prejudicada. Mais apropriado seria conferir a comenda a Delúbio Soares, que exercia junto ao PT a mesma função de Judas junto aos apóstolos, a de tesoureiro. E que, segundo João, roubava a caixa comum.

A idéia de Judas como santo não era estranha aos homens do medievo. Em 1387, o inquisidor Nicolas Eymeric pediu a cabeça de São Vicente Ferrer, por este ter afirmado que o arrependimento de Judas fora sincero e salutar. Como, devido à multidão, não pudera se aproximar de Cristo para pedir seu perdão, teria se enforcado e obtido, no Céu, a remissão de seus pecados. São Vicente só não foi para a fogueira por ter a proteção de Pedro de Luna, então cardeal de Aragon. Em 1394, uma vez eleito papa, sob o nome de Bento XIII, Pedro de Luna exigiu de Eymeric a entrega do dossiê e o queimou sem mais cerimônias. Por vias outras que não o arrependimento, Judas começa a fazer carreira como eleito do Senhor.

Nestes dias da Paixão, convido o leitor a apreciar a prata de casa. Judas, traidor ou traído (1968, Gráfica Record Editora, Rio) é um desses raros estudos bíblicos de valor de autoria de um brasileiro. Seu autor, Danillo Nunes, cidadão de Santa Maria (RS) não é nenhum teólogo ou historiador de religiões. Foi ministro do Tribunal de Contas, general-de-divisão R1 e professor de História Militar, Blindados e Tática Geral na Escola de Estado-Maior do Exército. Segundo o autor, se houve um traidor naqueles dias dramáticos, este não foi Judas. E se houve algum herói, este não foi o Cristo.

Diz Lucas (22:22): "Porque, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!" Para Danillo Nunes, fica claro nesta sentença contraditória, que Judas é um instrumento da vontade divina. Muito antes da tradução do Evangelho de Judas, este versículo não deixa "a quem é cristão outra alternativa senão a de considerar que Judas, cumprindo seu destino por desígnio de Deus, contribuiu com seu gesto para a glória de Jesus, o Cristo".

O autor nos mostra um Judas gradativamente decepcionado com o Cristo. Começa quando, na segunda-feira, 11 do Nisã, Cristo expulsa os camelôs do templo e instiga os mendigos ao saque generalizado. Para Judas, Cristo passou a ser um mistificador que se apresentava como Messias, um homem perigoso que incitava os miseráveis ao motim e à baderna e os deixava entregues à própria sorte. Sua conduta atrasaria de muito o irromper da Revolução, pois não só desencantaria as massas populares, que não mais creriam nele, como acenderia a desconfiança da classe dirigente, pronta, a partir daquele momento, a reprimir qualquer veleidade de insurreição.

Ao fugir para Betânia com os seus, Cristo teve uma frase infeliz: "Vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não será deixada aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada". Segundo Mateus, duas testemunhas assim depuseram: "Este disse: - Posso destruir o Templo de Deus e reedificá-lo em três dias". É possível que o Cristo estivesse usando uma linguagem metafórica, escreve Nunes. Mas Judas interpretou a afirmação do Mestre em seu sentido literal e horrorizou-se, porque constituía imperdoável blasfêmia. Nunes lembra que Estevão, ao ser julgado pelo Sinédrio, dezoito dias após a crucificação do Cristo, atacou o Templo e o culto que nele celebravam. A indignação foi tão grande que a multidão o arrebatou e o levou para fora da cidade, matando-o a pedradas (Atos 7:54,60). A ofensa do Cristo fora bem mais grave.

A gota d'água para Judas seria o momento em que Cristo, interrogado se era ou não lícito pagar tributos a César, diz: "Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Ora, o que o povo mais odiava era a obrigação de pagamentos de impostos aos imperadores romanos. Não somente por serem extorsivos e permitirem os maiores abusos por parte dos publicanos, mas ainda por representarem o símbolo da escravização de Israel. Ao reconhecer a validade do imposto a César, Jesus se tornava um colaboracionista. Neste momento, Judas teria tomado sua resolução. Seu rompimento com o Cristo estava consumado.

Observemos a cronologia. Na segunda-feira, 11 do Nisã, Cristo havia bagunçado o Templo. Na terça-feira, 12, ocorre o episódio dos tributos a César. Dia seguinte, quarta-feira, 13 do Nisã, Judas se oferece para entregar o Mestre. O imaginário popular pretende que Judas teria entregue o Cristo por trinta dinheiros. Não é verdade. Marcos relata que Judas "foi ter com os principais sacerdotes para lhes entregar Jesus e eles, ouvindo-o, alegraram-se e prometeram-lhe dinheiro". A motivação inicial de Judas era outra que não dinheiro.

Por outro lado, o famoso beijo de Judas não teria a intenção de indicar o Cristo. Não seria difícil para os romanos reconhecerem quem havia depredado o Templo poucos dias atrás. O beijo seria para determinar o melhor momento para prender o Cristo sem provocar revolta popular. Judas era zelota, facção de nacionalismo extremado. Segundo Danillo Nunes, aos olhos de Judas, Cristo não passava de um embusteiro que, em nome de Deus, percorrera a Palestina arregimentando o povo para um levante, despertando na massa humilde a esperança, para depois desertar, deixando-a mergulhada na frustração. O inútil motim do 11 de Nizã, no Átrio dos Gentios, do qual resultara um massacre popular, trouxera descrédito à causa nacionalista. As heresias pronunciadas contra o Templo, de que poderia destruí-lo e reerguê-lo em três dias, mostravam o Cristo como um louco ou elemento perigoso. E o reconhecimento expresso de que os romanos tinham o direito de cobrar impostos, revelavam-no um traidor. Jesus - como disse Jacques Isorni, em Le Vrai Procès de Jésus - não seria um patriota, mas um apátrida de raça judia.

Para o autor, o gesto de Judas foi consciente. Quis não só punir Jesus por julgá-lo culpado de impostura, mas porque o julgava prejudicial à causa nacionalista. Se Cristo não tivesse sido condenado, provavelmente Judas o teria matado. Se conhecesse o juízo milenar e unânime da posteridade a seu respeito - conclui Danillo Nunes - quem sabe, tomado de horror, não exclamaria:

- Meu Deus, eles julgam-me um traidor!