¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 23, 2006
 
VOLTA ÀS TREVAS



Há quase meio século, mais precisamente em 1958, Louis Malle dirigiu Os Amantes, filme que passou a ser conhecido por uma única cena, quando o personagem masculino descia os lábios pelo ventre da Jeanne Moreau. A cena terminava aí. Ao ser exibido em Porto Alegre, já nos anos 60, um grupo de espectadores criou a Turma do Apito. No momento da cena, a turma apitava em protesto ao gesto abominável. Isso que a câmera não descia além do umbigo! A Turma do Apito, talvez intuindo o próprio ridículo, se manteve sempre no anonimato. Soube-se mais tarde que era liderada por um ilustre jurista, o Dr. Rui Cirne Lima, diretor da Faculdade de Direito da URGS. Na época, apesar de séculos de literatura fescenina, sexo oral era tabu. Um criminalista como Washington de Barros Monteiro, por exemplo, em seus comentários ao Código Penal, falava do "asco indizível da felatio in ore". Se bem me lembro de minhas aulas de Direito, ele também afirmava que "mesmo no tálamo conjugal, a esposa guarda resquícios de pudor". Assim falavam os juristas há meio século.

Alguns anos depois, la Moreau novamente mexia com a moral vigente, com Jules et Jim, filme de François Truffaut, onde a personagem central, Catherine, vivia um tranqüilo triângulo com dois amigos, o Jules e o Jim do título. O ano de feitura do filme, 1962, é emblemático, foi quando chegou a pílula anticoncepcional no Brasil. O filme terá chegado alguns mais tarde, quando já se respirava melhor em termos de costumes. O idílico romance de Catherine - ambientado em Paris, em 1912, antes da primeira guerra - foi recebido sem escândalos e saudado como um hino à vida e ao prazer, que celebrava a amizade e a ternura.

Em 65, Luchino Visconti deu mais uma sacudida nas já complacentes estruturas do que então se chamava de família burguesa. Com Vagas Estrelas da Ursa, o conde cineasta abordava o incesto entre irmãos. A transgressão foi tranqüilamente absorvida. Que mais não fosse, não era fácil ter uma irmã como la Cardinale. Em 1968, Pier Paolo Pasolini faz mais uma investida contra a fortaleza assediada. Em Teorema, um estranho se hospeda na mansão do dono de uma fábrica e seduz a mãe, o pai, a filha, o filho e nem a empregada consegue escapar de seu fascínio. Em 71, Visconti ataca de novo com A Morte em Veneza, onde narra a paixão senil do compositor Gustav Von Aschenbach pelo belo e quase imberbe Tadzio. O filme era baseado no livro homônimo de Thomas Mann, de 1912, mesmo ano em que se situa a trama de Jules et Jim. Em 76, Nagisha Oshima mostra, em O Império dos Sentidos - com direito a detalhes - o que Louis Malle apenas insinuara em Os Amantes. Proibido no Japão, o filme muito deve ter contribuído para a indústria turística... francesa. Excursões de japoneses - e japonesas, principalmente - invadiam Paris para ver o filme de Oshima. Eu o assisti em uma sala da Champs Élysées, em meio aos risos histéricos dos japas. Não que o filme fosse divertido. Rir, no Japão, é uma forma de expressar nervosismo.

No Ocidente, respirava-se bastante bem naqueles dias. Estes filmes não provocaram escândalo, mas apenas o burburinho que um bom filme provocava então. A família não morreu, como temiam os puritanos da época. Apenas tornou-se mais aberta ao prazer. As esposas haviam perdido seus resquícios de pudor no tálamo conjugal, como diziam os juristas. Naqueles tempos, ter um filho homossexual era uma desgraça. Hoje, um pai ou mãe respiram aliviados se o filho não tem Aids.

Os universitários de hoje talvez nem saibam mais quem foi Hermann Hesse. Autores fundamentais desaparecem dos catálogos da livrarias. Hoje, para encontrá-los, só fuçando em sebos. Nos dias de minhas universidades, o escritor alemão foi uma espécie de guru. Para aqueles em fuga para o Oriente, Sidarta. Para os que queriam o melhor do Ocidente, O Lobo da Estepe. Para quem preferia especulações metafísicas, O Jogo das Pérolas de Vidro.

Harry Haller, o personagem central de O Lobo da Estepe, em princípio nada tem de atraente. É um pacato burguês que vive enclausurado em uma rotina absoluta. Até o dia em que encontra um teatro "só para loucos" e sua vida se transforma. O romance começa a tornar-se interessante. Hermínia, Maria e Pablo o conduzem a uma outra vida e Harry Haller aprende a dançar, passa a conhecer o universo feminino e o mundo dos bares e restaurantes. O lobo arisco e solitário se torna bicho humano.

Uma pequena frase de Hesse foi uma bandeira para minha geração. Lá pelas tantas, Haller se interessa por "alegres jogos amorosos em três ou quatro". Na época se lia muito Henry Miller - outro desaparecido dos catálogos - e em Paris os échangistes estavam em alta. Recém se havia descoberto a pílula e a Aids ainda não despontara no horizonte. Foi um interregno - como direi? - paradisíaco. Haller dava vazão à sua sensualidade adormecida por séculos de moral cristã. Hesse nos apontava um rumo, o do prazer sem peias. Em verdade, não era o primeiro a desfraldar esta bandeira. Nem seria o último.

Avanço cinco décadas após Os Amantes e a Turma do Apito. Isto é, meio século. Estamos em 2006. Uma universitária de 24 anos, estudante de Direito em Marília, no interior de São Paulo, teve de ser retirada de dentro da sala de aula pela Polícia Militar, por motivo de segurança, depois que fotos íntimas dela foram divulgadas na internet. A moça, que certamente jamais leu Herman Hesse, teria se entregado a um alegre folguedo em três. Àquele mesmo folguedo que em Jules et Jim nos soava a saudável utopia. A moça nega, diz que tudo foi montagem. Segundo o delegado Valter Bettio, responsável pelo inquérito, no depoimento a estudante disse que as roupas, acessórios e calçados que aparecem nas fotos não são dela, assim como o corpo é diferente do seu. Isto não importa. O que importa é a reação de seus colegas.

Ao chegar à faculdade onde estuda, foi ameaçada por alunos de vários cursos. Com ofensas e gritaria, os bravos guardiões da moral cristã formaram grupos do lado de fora da sala de aula onde ela estudava. Um dos professores trancou a moça na sala para protegê-la e chamou a polícia. Os PMs foram obrigados a usar gás de pimenta para desfazer o tumulto e retirar a garota da faculdade. É o que contam os jornais.

A universidade já foi arejada. Os tempos passados, também. Ao que tudo indica, estamos voltando à caça às bruxas e às trevas da Idade Média. Universitários, que constituem as futuras elites da nação, violaram a privacidade de uma colega e a agridem como a uma criminosa. Pior ainda, universitários de Direito, justo os que por ofício deveriam proteger a privacidade dos cidadãos. Como se uma boa partouse fosse prática tipificada como crime em nosso Código Penal. O ódio ao prazer, que havia sido conjurado nos anos 60, volta a imperar. Que se pode esperar no futuro desses brutos que pretendem proibir a uma menina a livre fruição de seu corpo?

Fosse um universitário flagrado com duas meninas, seria saudado como campeão. No Brasil, ao contrário da lei de Lavoisier, se nada se cria, tudo se perde e nada se transforma.