¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 28, 2006
 
QUANDO VERDADE É CRIME


Ao país dos Huyhnhnms ainda não fui. Bem que gostaria de ter ido. Lá não existe a palavra mentira. Se alguém diz algo que não confere com os fatos, diz-se que está dizendo a coisa que não é. Os Huyhnhnms não possuem na sua língua vocábulos para exprimir a verdade ou a mentira. Assim sendo, duvidar e não acreditar o que se ouve dizer é para os Huyhnhnms uma operação de espírito à qual não estão habituados. Quando são obrigados a isso, o espírito sai-lhes por assim dizer fora da órbita natural. Quem nos conta tais peculiaridades é o capitão Lemuel Gulliver.

"Recordo-me até de que, conversando algumas vezes com meu amo a respeito das propriedades da natureza humana - continua Gulliver - tal como existe nas outras partes do mundo, e havia ocasião para lhe falar da mentira e do engano, tinha muito custo em perceber o que lhe queria dizer, porque raciocinava assim: o uso da palavra foi-nos dado para comunicar uns aos outros o que pensamos e para sabermos o que ignoramos.Ora, se se diz a coisa que não é, não se procede conforme a intenção da natureza; faz-se um abusivo uso da palavra; fala-se e não se fala. Falar não é fazer compreender o que se pensa?
"- Ora, quando o senhor faz o que se chama mentir, dá-me a compreender o que não se pensa: em vez de me dizer o que é, não fala, só abre a boca para articular sons vãos, não me tira da ignorância, aumenta-a.
"Tal é a idéia que os Huyhnhnms têm da faculdade de mentir, que nós, homens, possuímos num grau tão perfeito e tão eminente".

Estou falando, é claro, das Viagens de Gulliver, certamente o livro mais sarcástico já escrito sobre a espécie humana. Os Huyhnhnms são cavalos. Neste país vivem também os Yahoos, seres simiescos e vis, semelhantes aos humanos, que costumam subir nas árvores para jogar excrementos nos Huyhnhnms. Os nobres cavalos, ao se defrontarem com Gulliver, o associam imediatamente aos repelentes Yahoos. A cultura e nobreza dos Huyhnhnms impressionou a tal ponto Gulliver que, ao voltar à sua Inglaterra natal, tomou distância de seus familiares e passou a freqüentar sua estrebaria, onde passava longas horas conversando com os cavalos.

Conversar com cavalos não é má idéia, neste nosso país de Yahoos, onde a todo instante lemos e ouvimos "a coisa que não é". Particularmente quando quem fala é um político. A começar pelo chefe da nação, Sua Excelência o Supremo Apedeuta, que consegue o milagre de transmitir, quando fala, onze mentiras em dez frases. A mentira é inerente ao político. Não há como ser eleito sem, pelo menos em algum momento, mentir. É inerente também aos advogados. Assistimos mentiras sórdidas todos os dias, proferidas por ilustres rábulas, vide os casos Richthofen, Pimenta Neves, Marcola. A advogada deste última, sem o menor resquício de pudor, afirma numa CPI que não sabia que seu cliente era líder do PCC. Não há, no entanto, como indignar-se pelo fato de que criminosos confessos mintam, quando mentem o presidente da República, o ministro da Justiça, o ministro da Fazenda, quando mentem os governistas e quando mente a oposição. A mentira se torna saúde e verdade insânia. Mente o pai para o filho, o filho para o pai, mente o marido à mulher e mente a mulher ao marido. Suponho que existam homens no mundo que não mintam para suas mulheres, mas por enquanto só encontrei um.

A própria história nasce da mentira. A lenda é uma mentira que ao final se torna história, dizia Jean Cocteau. A humanidade tem suas bases na mentira religiosa e hoje vivemos os séculos da mentira ideológica. Assim como o medievo teve sua sustentação na mentira eclesial, o século XX foi, de ponta a ponta, uma mentira só, a mentira do comunismo. Para desfraldar a bandeira de uma doutrina assassina, só havia um recurso: mentir. Enquanto milhões de pessoas morriam de fome ou morriam nos campos de "reeducação" na China e na URSS, os jornais do século nos mostravam regimes paradisíacos, que haviam superado todas as contradições da sociedade humana e construído o "homem novo", antiqüíssimo chavão marxista, hoje retomado com ares de novidade por um bronco como Hugo Chávez. Que talvez já nem lembre que este chavão foi bandeira de um assassino recente, Che Guevara, hoje cultuado como santo, graças às mentiras que inundaram o século. "A mentira é um belo crepúsculo que realça cada objeto", escreveu Camus.

Nos dias de hoje, reproduzida pela imprensa, a mentira é tão avassaladora que pode passar por louco quem a nega. Por exemplo, o 14 de maio último, a "segunda-feira do terror" em São Paulo. Não houve terror algum nesta cidade. Se havia alguém aterrorizado eram os policiais, que aliás são pagos para evitar o terror. A mentira do terror percorreu o país e o mundo e quem hoje negar este terror passa por insano. Digamos que os paulistanos tenham ficado apreensivos. Mas apreensão não rende primeira página. Terror vende mais.

A mentira é universal, só não existe no país dos Huyhnhnms. Só podia ser um país mítico, do reino do imaginário. Se é universal, neste Brasil foi promovida a direito inalienável. Durante as CPIs, que são constituídas para chegar-se à verdade, habeas corpus preventivos são concedidos pelo Supremo Tribunal Federal para garantir aos depoentes o direito de mentir. O leitor pode procurar no universo das nações uma Suprema Corte garantindo o sagrado direito de mentir. Não vai encontrar. Se há países em que o prosaico hábito de mentir derruba presidentes, no Brasil é a mentira que os sustenta. A mentira tornou-se institucional.

Assim sendo, não surpreende fato ocorrido no Congresso na semana passada. Em sessão de acareamento no Congresso, o deputado Arnaldo Faria de Sá, disse a Sérgio Weslei dos Santos, um dos advogados do PCC: "Você aprendeu bem com a malandragem, hein". A resposta do advogado foi um límpido momento de verdade em meio a um festival de mentiras: "A gente aprende rápido aqui".

Foi preso e algemado na hora. Cuidado com a língua, leitor! Em país em que a mentira se tornou norma, verdade é crime.