¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 12, 2006
 
SAUDADES DO OBDULIO



Em 1971, residindo já há seis meses em Estocolmo, fui à polícia de Imigração renovar meu bosättningtillstånd. Melhor nem pronunciar a palavrinha, vai soar meio esquisito em português. Em todo caso, significa permissão de residência. Konstapel é o título que se dá ao policial. Registrei este momento em meu romance Ponche Verde.

- Nacionalidade?
- Brasileira.
- Ah! Então o senhor quer asilo político?
- Oh não, jag ska tacka nej, como pode muito bem ver Herr Konstapel, nesse formulário peço apenas uma permissão de estada, agradeço a generosa oferta, que aliás é pertinente. Meu país vive uma ditadura, sei disso, os dias não são os melhores para quem pensa e escreve o que pensa. Mas antes de fugir de ditaduras, Herr Konstapel, estou fugindo do país todo, fujo exatamente daquilo que para vossos patrícios é sinônimo de charme e exotismo, fujo do carnaval e do futebol, do samba e da miséria, da indigência mental e da corrupção, quero tirar umas férias do subdesenvolvimento, viver em um território onde o homem sofre os problemas da condição humana e não os da condição animal. Muito antes de os militares tomarem o poder, min Herr, eu já não suportava os civis. Veja o Sr., meu povo morre de fome e todos sorriem felizes e desdentados quando um time de futebol bate outro, se bem que a coisa não é assim tão tétrica como a pinto, veja bem, lá também existe luxo, requinte, hotéis que talvez fizessem inveja aos de vosso rico país, mansões de sonho isoladas da miséria que as envolve por arames farpados, guardas e cães, há cronistas sociais que acendem charutos com notas de cem dólares e homens catando no lixo restos de podridão para comer. E não fujo só do Brasil, Sr. Policial Superdesenvolvido, fujo também de minha condição de jornalista, pertenço a uma classe que se pretende de esquerda e entorpece multidões com doses cavalares de ... futebol.


Ou seja, não é de hoje que abomino o Brasil do futebol. Os suecos imaginavam que eu fugia do regime militar. Nada disso. Razões bem anteriores à ditadura me faziam detestar essa idiossincrasia de meu país. Em uma festa em Estocolmo, um Svenson puxou conversa comigo. Queria saber do Garincha, do Pelê, do Jairssinho. Disse-lhe que estava na Suécia exatamente para não ouvir falar dessa gente. "Então não temos mais nada a conversar", disse-me. Varsågod, min kära! Como queira, meu caro. E fui juntar-me às tjejers, elas pelo menos não estavam interessadas em futebol. Não era a ditadura que me afastava do país. Ditaduras passam. O futebol é eterno.

Em outras viagens, sempre perambulei com a praga pregada às costas. No aeroporto de Bucareste, um guarda de fronteira, mal viu meu passaporte, abriu em um sorriso afável sua cara de laje e disse: "Pelê". Ao entrar em Berlim oriental, outro cara de laje, após olhar um minuto para minha foto e mais um minuto para meu rosto (e aí você vê quanto custa a passar um minuto), também sorriu: "Pelê". Nas montanhas de El Hoggar, no Saara argelino, senti nos olhos de um funcionário embuçado um brilho alegre ao ver que meu passaporte era do país de Pelé. Todos os esforços do Brasil para constituir-se como nação, toda a história nacional, todas as instituições brasileiras resumiam-se a uma palavrinha de quatro letras. Pelé passou. Em minhas últimas viagens, tive de suportar outra: Ronaldinho.

Ora, direis, o cronista abomina o futebol. Nada disso. Considero o futebol um esporte muito plástico, bonito, inteligente e mesmo excitante. Joguei muito futebol em meus dias de guri. (Eu era bom. Certa vez, até mesmo fiz um gol). O que abomino é a passionalidade. Li em algum lugar que, no século passado, um time na Inglaterra aplaudiu uma jogada brilhante do adversário. Eu, que nunca em minha vida entrei em estádio algum, gostaria de estar lá nesse dia. Isto é civilização.

Mais que o fanatismo, abomino esta mania tupiniquim de associar o futebol à nação. Toda época de copa, vivo meus dias de nojo. Já não se pode ir a um restaurante sem ter de suportar os patrioteiros berrando a cada gol. O verde e amarelo torna-se emético. Pessoas aparentemente inteligentes viram de repente brutos fanatizados. Nem precisa o Brasil jogar. Qualquer jogo é aquecimento para o dia em que a pátria entrar de chuteiras no campo. E ai de você se pedir a um garçom para baixar o volume da TV. Passará por inimigo da nação. Isso se não for corrido do restaurante.

De uma forma que lógica alguma explica, cada vitória do Brasil é vista como uma vitória do governo no poder, seja lá qual governo for. Assim foi nos dias de Médici, assim é nestes dias do Supremo Apedeuta. É como se o presidente e seus ministros tivessem suado a camiseta nos estádios. Cientes deste vício deste povinho infame, os governantes se apressam em colar-se à seleção. A copa passa a ser um fator eleitoral. Nestes dias, ninguém mais lembrará que o PT montou a mais vasta quadrilha de toda a história do país, que o presidente acha algo perfeitamente normal o caixa dois, como nada vê de mal no fato de seus filhos enriquecerem com tráfico de influência. Ninguém mais lembrará dos assassinatos em série do PT, nem do financiamento estatal à guerrilha católico-marxista. Muito menos dos ministros escorraçados de seus ministérios por participação na quadrilha. Tudo será borrado da memória nacional. Depois da copa, começa-se de zero.

Pior é o espetáculo da imprensa. Jornalistas, que por questão de ofício deveriam ser profissionais lúcidos, transformam-se em palhaços abobalhados que só repetem lugares comuns e frases vazias. Passamos a viver em pleno império das nulidades. Os jornais passam a dedicar cadernos inteiros à crônica ... do nada. Rádio e televisão ministram todos os dias doses colossais de anestésicos. Em falta de assunto, criam-se tragédias em torno às bolhas no pé de uma vedete qualquer, à lesão no menisco de outro analfabeto. Saudades dos anos 50. Outro dia, pesquisando jornais da época, tive o grato prazer de constatar que, naqueles dias, futebol não entrava na primeira página dos jornais.

O que me afasta do futebol é o fanatismo do povinho, dizia. Paradoxalmente, nestes dias de copa viro torcedor. Desde que me conheço por gente, em todas as copas, sempre torci... pela derrota do Brasil. Torço especialmente nas oitavas, quando uma derrota significa exclusão da competição. Mas também não me desagrada ver o Brasil goleado em uma semifinal ou final. Assim sendo, ergo minhas preces neste início de campeonato pela vitória da Croácia. Hrvatska, em croata. País com um nome assim bem merece uma vitória. Além do mais é país de fraldas, tem pouco mais de dez anos de vida. Que viva a Hrvatska! Uma taça lhe viria bem para apresentar-se ao mundo. Se a Hrvatska não contiver o Brasil, deposito minhas esperanças nos demais adversários pela frente. Se, na pior das hipóteses, o Brasil chegar à final, rezo para que um Obdulio Varela ressurja das cinzas para terminar a copa com fecho de ouro. Nestes dias de tão raras boas notícias, peço aos deuses um presente para mim mesmo. Uma derrota, de preferência humilhante, de meu país. Se ela ocorrer, o leitor já pode imaginar meu sorriso imenso e feliz.

Você conhece algum país que faça feriado em dia de jogo de sua seleção? Se disser que conhece, vou dizer que você se engana. Esta vergonha é nossa e exclusivamente nossa.

Você quer torcer pelo Brasil? Torça. Mas quando estiver gritando "pra frente, Brasil!" preste atenção ao eco: "Lula 2006".