¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 20, 2006
 
CAMUS, ZIDANE E A INDIGÊNCIA
MENTAL TUPINIQUIM




Quando pesquisei Albert Camus, para minha tese de doutorado, vi muitas interpretações absurdas para suas novelas, sempre com alguma propensão metafísica, e portanto sujeitas aos mais diversos desvarios. Mas a intelligentsia tupiniquim superou de longe todo o besteirol já escrito sobre Camus. Em reportagem de Sylvia Colombo, lemos na Folha de São Paulo de hoje:

Quando Meursault, o protagonista do romance filosófico de Albert Camus, O Estrangeiro (1942), atira e mata um homem, sem razão aparente e debaixo de um sol escaldante, percebe que alterou o equilíbrio de uma "praia onde havia sido feliz" e que aquilo o levaria a bater, irremediavelmente, à "porta da desgraça".
Seria possível comparar essa passagem memorável da obra de Camus (1913-1960) com a explosão de cólera do jogador francês Zinedine Zidane na final da Copa? Seria a cabeçada que deu no italiano Materazzi, como os tiros de Meursault, um ato também irracional e aparentemente gratuito que, no caso de Zizou, colocava em risco uma trajetória gloriosa?(...) Entre Zidane e Meursault há alguns paralelos possíveis. Em primeiro lugar, o fato de que as duas explosões de violência destruíram, num momento luminoso de suas vidas, uma narrativa até então coerente. Depois, nos dois casos, temos um julgamento público que pode terminar numa reparação, mas não necessariamente numa explicação racional sobre o que aconteceu. E, por fim, aí já no plano da mera curiosidade, tanto Camus como Zidane são de origem argelina.


Ora, em O Estrangeiro temos um assassinato, com fortes conotações metafísicas. Na verdade, é um recurso literário do autor - semelhante ao crime gratuito cometido por Lafcadio, em Os Falsos Moedeiros, de Gide - para discutir a questão do assassinato. É um tema eminentemente dostoievskiano. No jogo final da Copa tivemos a atitude estúpida de uma estrela do futebol, que aliás já cometera treze outros gestos também estúpidos em jogos passados. Sua cabeçada de fim de carreira não deveria supreender quem conhece sua trajetória. Quanto a afirmar que Zidane e Camus têm origens argelinas em pouco difere de afirmar que Hitler e Mozart eram austríacos. Ou seja, daí não concluí coisa alguma.

Para o escritor Joca Reiners Terron, o jogador fez uma paródia involuntária de Meursault. "A cabeçada e a negação de um arrependimento posterior soaram como recomendação de lucidez no absurdo". Já para o colunista da Folha João Pereira Coutinho, "o que mais os aproxima é o fato de terem mostrado que nem todos os nossos comportamentos têm explicações civilizacionais".

Um outro colunista da mesma Folha e pesquisador da obra de Camus, Manuel da Costa Pinto, recorre a O Homem Revoltado (1951),

em que o escritor argelino distingue os crimes de paixão dos crimes de lógica. "Os primeiros conservam sua excepcionalidade, enquanto os outros, ao advogarem sua necessidade, acabam virando regra. Zidane pertence ao primeiro caso. Preferiu ser fiel a si mesmo, mas, em nenhum momento, reivindicou uma razão abstrata que legitimasse o que fez. Reconheceu a culpa, mas afirmando que naquele momento - e só nele - a violência era imperativa".

E absurdos outros, por el estilo. Sem querer comparar mas já comparando, diz a crítica literária Leyla Perrone-Moysés:

O paralelo pode ser interessante e é bom que apareça porque esse episódio merece debate. Nos dois casos houve um surto. Mas são coisas diferentes. Meursault sente o mal-estar do mundo e não reage. Zidane estava reagindo.

Os bravos intelectuais tupiniquins parecem ter-se rendido à estupidez coletiva. Claro que jamais se apresentarão como meros torcedores de futebol, estes senhores que julgam estar dizendo algo muito inteligente quando berram: golaço! Um intelectual precisa enfeitar seu discurso. Recorrem a Camus, nada menos. Qualquer dia ainda descobrem que Camus foi goleiro em jogos de futebol de várzea - como de fato foi - e aí estarão definitivamente comprovadas as íntimas relações do escritor prêmio Nobel e o atleta imigrante. No fundo, sob a casca de erudição, uma profunda indigência mental.

Mais um pouco, e citarão Sartre para explicar a derrota da França. Sartre é aquele "filósofo" que um dia confessou, todo contente, a Simone de Beauvoir: "me superei. Hoje consegui escrever um período que nem eu mesmo consigo entender". O Ser e o Nada será certamente uma leitura muito esclarecedora para entender a última Copa. Chegarão então os dias em que, sem uma sólida formação filosófica, você nada entenderá de futebol.