¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, julho 16, 2006
 
ESTADÃO MENTE



É triste ver um grande jornal, que se pretende sério, deseducando seus leitores. É o que ocorre na edição de hoje de O Estado de São Paulo. Ao comentar a edição do livro de George Orwell, Homage to Catalonia (título brasileiro: Lutando na Espanha), a repórter Beatriz Coelho Silva faz um verdadeiro hagiológio a Stalin. Em pleno ano da graça de 2006, mais de meio século após a morte do déspota. Escreve a moça: "A guerra começou em 18 de julho de 1936, quando o general Francisco Franco deu um golpe de Estado para pôr fim à república proclamada cinco anos antes com um projeto de modernizar o país, ainda com resquícios de feudalismo e mesmo da Inquisição".

Ora, a república proclamada cinco anos antes era uma ponta de lança de Stalin, cravada na Espanha para o posterior domínio da Europa. Não tinha projeto algum de modernizar o país, e sim de empurrá-lo rumo às trevas do socialismo. Se alguém modernizou a Espanha, tranformando-a de país de economia rural em país de economia industrial, foi precisamente Francisco Franco. Não é por acaso que a Espanha é hoje um país invejado por seu desenvolvimento e os países socialistas recém estão despertando do pesadelo soviético. Se milhares de pessoas já morreram tentando fugir do antigo paraíso socialista, hoje milhares de africanos estão morrendo nas águas do Mediterrâneo, tentando um lugar ao sol na Espanha legada por Franco.

Ao falar das Brigadas Internacionais, escreve a moça: "até 60 mil voluntários de 50 países lutaram na Espanha contra o fascismo, entre eles os americanos da Brigada Abraham Lincoln". No bestunto da repórter, defender a própria pátria da agressão russa é ser fascista.

"Entre os intelectuais proeminentes no lado republicano estavam escritores como o americano Ernesto Hemingway, o britânico George Orwell e o francês André Malraux". Num exercício talvez intuitivo de desinformação, Beatriz Coelho joga trigo e joio no mesmo saco. Não se pode mesclar um pensador libertário como Orwell - que mais tarde escreveria a mais contundente diatribe contra o comunismo, 1984 - com um americano stalinista deslumbrado e com um francês vigarista, que mentiu sobre sua participação na revolução chinesa e na Guerra Civil espanhola. Almas generosas pretendem que, afinal de contas, Malraux era um escritor, não um historiador, como se a escritores fosse permissível propalar mentiras históricas. Que mais não seja, Malraux morreu implicado em uma affaire de contrabando de baixos-relevos de Angkor, tendo sido condenado à revelia por um tribunal de Saigon a um ano de prisão e uma multa de cinco mil francos.

Orwell pertencia a outra estirpe. À estirpe de homens como André Gide, Ernesto Sábato, Albert Camus, Raymond Aron, Arthur Koestler, Ignazio Silone, Richard Wright, Louis Fischer, Stephen Spender e tantos outros, que não se deixaram levar pelo grande engodo do século passado. Orwell não pode ser misturado à escória comunista ou aos compagnons de route.

Segundo a repórter, "o governo republicano só podia receber ajuda e comprar armas da União Soviética. A ajuda incluía aviões, pilotos treinados, tanques e tripulações". Esqueceu de incluir no pacote a mercadoria mais importante, ideologia. Esqueceu também o custo. Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca da magnânima ajuda. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas".

E, como não poderia deixar de faltar a cada alusão à Guerra Civil, a eterna e sempre renovada mentira em torno ao quadro Guernica, do vigarista malaguenho Pablo Picasso. Conforme os manuais de apologética marxista, "obra em homenagem às vítimas da cidade basca de Guernica, bombardeada por Franco".

Ora, os fatos são bem outros. Só alguém hipnotizado pela mídia poderá ver cenas de bombardeio em Guernica. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi.

Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, até hoje multidões hipnotizadas pela propaganda vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. Esta lenda até hoje é repetida, tanto por focas novatos numa redação, como por escritores de renome nacional. De um só golpe de pincel, o pintor malaguenho traiu a memória do amigo e mentiu para a História.

É deplorável ver um jornal como o Estadão repetindo, com foros de verdade, antigas potocas stalinistas.