¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 12, 2006
 
EU, DEUS (3)



Em Porto Alegre, meu ponto de referência foi, durante anos, o Chalé da Praça XV, um restaurante quase centenário (hoje decadente), onde eu bebia, lia, trabalhava, recebia meus amigos e amadas, habitantes de Orion, personagens do gênero. Era meu escritório e sala-de-estar. Ponche Verde começa e termina ali. De minha mesa participava um orionino da gema, o Carlos Ducatti, em missão na terra, que tomei como personagem em meu romance. Afinal, se uma virgem pode conceber de uma pombinha - e este mito embasa a cultura ocidental - porque aquele serzinho todo fechado em copas não poderia vir de uma galáxia distante?

Ao voltar de Paris, após alguns dias no Rio, desembarquei em Porto Alegre, aí pelas 20h. Do aeroporto, fui direto ao bar. Minhas crônicas, que eu enviava adiantadas, continuavam sendo publicadas como se eu estivesse na França. Nem minha mulher, nem minha mãe sabiam que eu já estava em Porto Alegre. Só sabia disto uma amiga, que me emprestava seu apartamento. Encontrei-me com ela no Chalé para apanhar as chaves. Salvo ela e os garçons, não encontrei nenhum conhecido.

Atrapalhado com o fuso horário, dormi até tarde no dia seguinte. Flanei pela Rua da Praia, queria surpreender algum amigo. Por milagre, não encontrei ninguém. À tardinha, voltei ao bar. Mal sentei, junto com a caipira, o garçom me traz uma carta. "Para o Dr. Deixaram hoje aqui". Só de olhar a caligrafia, senti na barriga aquele friozinho prenunciador de catástrofes. Pior de tudo: a carta não tinha selos. Era a própria. Lembro algumas frases:

"Meu fantasma adorado. Sonhei ontem que virias e vim de Ojeriza para te encontrar. Te espero na Igreja da Conceição, às seis horas. Estou no último banco, com um lenço branco com bolinhas azuis na cabeça, minha mãe Semilda vive dizendo que tenho a cabeça cheia de bolinhas azuis. Por favor, vem me encontrar. Estou com dinheiro só para a passagem de volta, preciso te ver hoje".

Seriam umas 5h30. A Igreja da Conceição ficava a uns 200 metros de minha mesa. Homem algum foge ao seu destino, pensei. Fugir é pior. Melhor resolver tudo já na chegada. Tinha meia hora para enfrentá-la. Sorvi a primeira caipira e rematei com uma segunda. O que não me ocorreu naquele momento foi o caráter simbólico do local e hora do encontro. A igreja era da Conceição. O encontro seria às seis, hora do Angelus, quando o anjo anuncia a Maria a vinda do novo Deus.

Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay, dizem os castelhanos. Até hoje não entendi esse encontro. No jornal, eu andava flanando em pleno Quartier Latin. Que eu estava no Brasil, só minha mulher sabia. Mas nem ela tinha a mínima idéia de quando chegaria a Porto Alegre. A amiga do apartamento, decididamente, não tinha contato algum com a moça, aliás nem sabia da existência dela ou de minhas preocupações. Só me resta uma hipótese: premonição. Vai ver que ela apostou no sonho e pagou pra ver.

Fui. Ela estava lá, ajoelhada no último banco. Magra, miudinha, nem feia nem bonita, aparentando uns trinta anos, com as bolinhas azuis na cabeça. Me aproximei em silêncio, encostei ao lado dela, em pé. Ela permaneceu imóvel. Sem virar o rosto, sem olhar-me, sentiu minha presença. Chorava. Fiz um sinal para que levantasse. Ela me olhou nos olhos, perplexa, como quem não acredita na própria certeza, as lágrimas começaram a cair em cascatas. Levantou e saímos caminhando, sempre em silêncio, ela sempre chorando. Em minha alma, algum demônio com espírito de porco começava a agir: "Leva ela a um bar discreto, leva. Senta com ela, pra ver se é mansa ou de atar".

Procurei um botequinho, já a meio caminho de meu ap. Sentei. Em todo o trajeto, ela balbuciara uma única frase, entre soluços. "Não acredito". Bom, eu também não estava acreditando muito. Aquilo me parecia algo do universo de Maupassant ou Bradbury. Mas ela estava ali. "Eu rezei tanto...", disse após alguns minutos de silêncio na mesa. Só bebeu água. "Eu não comi nada hoje. Só tenho farinha no estômago".

Resumindo: venceu o espírito de porco e fomos para o apartamento. Recuar já não tinha sentido. A loucura teria de ser levada até o fim ou eu não teria mais sossego. "Eu treinei bastante, com muitos homens, me preparando para este encontro". Fui então apresentado à Viúva Negra. Feito o que já não podia mais deixar de ser feito, ela voltou para Ojeriza. Procurou-me ainda mais uma vez em Porto Alegre e voltei para a França. Cleópatra conhecera o mito em carne e osso, talvez me largasse o pé.

Santa ingenuidade! Cheguei em Paris e lá estava, em minha caixa de correspondência, o envelope com a letra inconfundível. O pior já passei, pensei, vamos ver o que a moça diz. A primeira frase foi terrorismo puro: "Já sinto o novo Deus que se mexe em meu ventre".

Se antes pensava em me refugiar no Leste, meu desejo agora era me afogar no Sena. Insultei-me, arranquei-me os cabelos. Adulto, agira como criança. As circunstâncias do encontro haviam sido tão insólitas que nem me preocupara em precaver-me. Bom, o mal estava feito e está fora de nosso alcance copidescar o passado. De qualquer forma, continuei em silêncio. As cartas foram rareando. Recebi ainda seu título de eleitor. Me apressei a enviá-lo, sem remetente, para a devida Seção Eleitoral.

Deus, se existe, deve ter alguma simpatia pelos ateus: o alarme era falso. A correspondência cessou. Para não ser tentado a escrever alguma ficção baseada naquelas cartas, joguei-as todas ao lixo. Fiquei com uma, para depois não achar que tudo fora sonho, justo aquela em que anunciava o novo Deus em seu ventre. Em outras voltas a Porto Alegre, sempre me acometia uma vaga apreensão. Ao que tudo indica, como o novo Deus não vingou, Cleópatra deve ter saído a buscar outros genitores. Através de um escritor lá do Sul, soube notícias dos movimentos dela. Andou escrevendo para outros escritores gaúchos, não sei como se saiu com eles. De qualquer forma, atualmente não tenho a mesma disposição que um dia tive de testar a lógica das gentes.