¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, agosto 12, 2006
 
VIAJAR



Em Dom Pedrito, anos depois de ter deixado a cidade, conheci o Dr. Davi, como era chamado. Não era doutor nem judeu, mas um fazendeiro nordestino que resolvera montar seu campinho naquelas plagas. Por campinho, entende-se lá na fronteira uma propriedade de várias quadras de sesmaria. Tinha bom rebanho de gado, suponho que 500 ou 600 cabeças, isso sem falar nos ovinos. Era homem extremamente generoso. Quando fazia bons negócios, costumava distribuir dinheiro a quem encontrava na rua. Certa vez, em Porto Alegre, no Chalé da Praça XV, enfiou-me no bolso um pacote de dinheiro.

- Que é isso, Davi? A troco de quê?

- Ganhei um monte de dinheiro hoje. Fica com ele.

- Mas Davi, não estou precisando de dinheiro...

- Então repassa às tuas mulheres. Estou contente e quero fazer pessoas contentes.

Bom, se era para assistência social... Não reclamei e passei a redistribuí-lo a minhas amigas da noite.

O Dr. Davi me invejava. "Olhem esse menino. Ele vive batendo perna pelo mundo. Deve ser muito rico". Mal imaginava o generoso nordestino que eu vivia mais de susto que de dinheiro. Viajei muito, é verdade. Mas quase sempre na condição de estudante ou de jornalista de país de moeda fraca. Boa parte de minhas viagens eu as devo ao jornalismo. Outro tanto a bolsas. Isto é, não me custaram nada. Mas rico nunca fui. Eu tentava chamar o Davi à aventura.

- Vende uma dúzia de teus bois, Davi. Serei teu guia na Europa.

Nada feito. Pelo que me consta, o Dr. Davi nunca ousou nem mesmo ir a Montevidéu, ali do outro lado da Fronteira. Não era que fosse um mão-fechada, tanto que gostava de distribuir dinheiro. Acho que tinha medo do anecúmeno.

Confesso não entender estas pessoas que, nadando no dinheiro, jamais cruzaram uma fronteira. Considero ser a viagem o supremo prazer do espírito e se hoje não tenho grandes posses é porque torrei meus salários viajando. Verdade que parte deles dediquei à assistência às moças da noite, outro prazer não menos supremo. Mas isto já é outro assunto.

Minha primeira viagem foi de Upamaruty a Dom Pedrito, de bicicleta, dez léguas por uma estrada de barro e areia. Tinha onze anos e não sabia muito bem como chegar lá. Segui o conselho de meu pai: "segue o caminho real, guri". Já na várzea do Santa Maria, comecei a ver estranhas silhuetas no horizonte. A cada pedalada, as silhuetas tomavam contornos mais precisos. Excitado, eu pedalava cada vez com maior vigor. Não conhecia cidade e Dom Pedrito me decepcionou. Em meu imaginário, brilhavam as cidades douradas dos contos de fadas, cheias de arcos, cúpulas, abóbadas e minaretes. Dom Pedrito nada tinha de dourada. Era cinza e muito sem graça. A bem da verdade, tinha uma mísera cúpula, das mais mixurucas, a da Igreja Matriz. Fora isso, um amontoado de casas retangulares e cheias de retas.

Estudei geografias e li um pouco sobre o planetinha. Nos dias de universidade, fiz um projeto: quero viver em Estocolmo. Dizem que o paraíso fica lá. Então é para lá que eu vou. Fui para Estocolmo. Fui e voltei. Não era o paraíso. Mais tarde concluí que o paraíso não existe. Mas para chegar a esta brilhante conclusão, é preciso sair de casa. Na volta, novo projeto: quero viver em Paris. Fui para Paris. Mais uma vez voltei. Meu outro projeto era morar em Barcelona. Não deu certo. Mas conquistei Madri e não me arrependo. Barcelona é linda, mas Madri tem mais charme. Nestas viagens, sempre me acompanhou a imagem do Davi. Rico e generoso, mas sem jamais ter ousado atravessar um mar que fosse.

Há leitores que vibram quando falo de viagens. Em próximas postagens, fugirei um pouco a nosso deplorável, triste e infame cotidiano e falarei de algumas viagens, episódios de viagens, encontros inusitados. Não propriamente de Estocolmo, Paris ou Madri. Sobre estas cidades, falo o tempo todo. Penso falar de viagens mais deslumbrantes. Não das cidades em que vivi, mas de paragens pelas quais passei. El Hoggar, Tromsø, Trolfjorden, Mljet, Cuenca, Tierra del Fuego. Minha intenção, leitor, é te arrancar desse sofá e te incitar ao vôo.