¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, agosto 16, 2006
 
VIAJAR - EM EL HOGGAR



No inicío da viagem, ficamos duas noites em Zeralda, cidade satélite de Argel, uma espécie de ilha concebida para ocidentais, onde viviam muitos técnicos da Petrobras. Destas noites, retenho um episódio. A camareira era uma bérbere adorável de olhos verdes, mignonne e provocante em uma generosa minissaia. Na segunda noite, eu voltava da casbá quando cruzei por uma mulher pequena e embuçada, pequena mas cheia de curvas, dois olhos verdes me queimando pela abertura do véu. Era ela, a camareira mignonne. Terminado seu trabalho na ilhota ocidental, onde exibia com gosto seus encantos, se embuçava e voltava a mergulhar em seu universo muçulmano.

A viagem começou mesmo em Tamanrasset, capital de el Hoggar, cidade erigida em barro vermelho, célebre por uma frase de De Gaulle que, durante o conflito franco-argelino, falava de uma "France de Dunkerque à Tamanrasset". A wilaya - como se diz por lá - hoje tem perto de 200 mil habitantes. Quando lá estive, tinha apenas 20 mil. Este violento acréscimo populacional resultou de migrações do Mali e do Níger, como também da chegada das populações do norte do país em busca de emprego, vindos como funcionários, técnicos, quadros da administração ou do Partido. Naqueles dias, a wilaya era habitada predominantemente por tuaregues e harratines. Os primeiros pertencem a uma tribo nômade do deserto, que por muito tempo viveu do comércio, particularmente o do sal. Os harratines, de cor parda, são sedentários e tratam da agricultura. Por muito tempo viveram em um regime de semi-escravidão. O tuaregue trazia sal, sementes e conhecimentos de agricultura. O harratine plantava. Quando os tuaregues voltavam, cobravam seu tributo em víveres. Com o advento do socialismo na Argélia, esta simbiose perfeita foi proibida pelos burocratas de Argel. Como burocrata não vai ao deserto para assistir as populações, tuaregues e harratinnes estavam sendo condenados à miséria. O incipiente turismo daquela época era visto como uma esperança de recuperação econômica da região.

Eu deambulava pelo mercado de camelos - que é como os turistas chamam os dromedários - quando um embuçado alto e silencioso, com um turbante imponente e enrolado nuns panos azuis, me estendeu a mão sem mais nem menos. Não a recusei, mas logo dele tomei distância. Infeliz gesto o meu. Era o guia de nossa excursão a El Hoggar e não foi fácil reconquistá-lo.

Éramos 28, na maioria franceses e alemães, e partimos em cinco ou seis Land Rovers sacolejantes equipados com rádio. Certos trechos eram feitos em dromedários. Não que fossem necessários, mas quem vai ao Saara quer montar um dromedário, ora bolas. Dormíamos em tendas ou em alguma aldeia, quando algum morador nos abria sua casa. Como não chove no deserto, as casas não têm teto. Se algum leitor está esperando relatos de temperaturas sufocantes, vou decepcioná-lo. Era inverno e estávamos nas montanhas do maciço de el Hoggar. Dez graus no máximo durante o dia e -15º durante a noite. Nas raras poças de água dos oásis, havia uma grossa camada de gelo na superfície. Sair da tenda ou da casa durante a noite para urinar era algo que exigia um certo estoicismo. Melhor esperar o raiar do sol. Há quem imagine que o Saara é uma região escaldante. Nada disso. É uma geografia gelada que aquece durante o dia.

Por falar em água, melhor levar junto. Os tuaregues e harratines a bebiam em cantis de pele de dromedário, uma água marrom como papel de embrulho que, aparentemente, não matava ninguém. Mas não seria nada salutar para seres urbanos habituados à água da torneira.

Bem entendido, perca a esperança de qualquer banho enquanto estiver no deserto. Para evitar comer areia, pode-se comprar alguns metros de tecido em Tamanrasset para fazer turbantes. Não adianta muito. Já no primeiro dia, você sente a areia rangendo nos dentes. Com o tempo, você já nem liga mais. O máximo de higiene permissível é lavar o rosto e escovar os dentes. A dieta tem muitas tâmaras e sardinhas, mas basicamente consiste em alho. Se você nunca experimentou passar dois ou três dias sem escovar os dentes, experimente. Verá como é rápida a passagem da civilização ao primitivismo.

O deserto é soberbo, mas... no deserto não há latrinas. Nem moitas. Assim, no momento da desoneração, mulheres para um lado do Land Rover, homens para o outro e boa sorte. Como nossas vis necessidades são mais imperiosas que nossos vãos pudores de civilizados, em pouco tempo o turista se adapta às novas circunstâncias. Com alguma sorte, sempre se encontra a proteção de algum rochedo.

Aparentemente não há água nem vegetação nas montanhas de el Hoggar. Mas só aparentemente. Olhando com mais vagar, descobrimos fiapos de grama, um grita outro não ouve. Gazelas vivem dessa ralíssima vegetação. Comem o que conseguem e bebem o orvalho da grama. Os oásis são chamados de jardins. Três ou quatro palmeiras e temos um jardim, onde se reúnem pequenos núcleos de harratines. Em geral, não têm idéia de quantos são. Se perguntamos, a resposta é uma só: beaucoup. Em função do turismo e da própria colonização, os nativos falam um francês rudimentar.

Em aldeias minúsculas, de dez ou doze casas, mais a daïra (sub-prefeitura) e uma escola, o sinal indefectível da burocracia de Argel. Na rua principal e única - em verdade, uma estrada poeirenta - por onde talvez passem cinco ou seis carros por semana, um semáforo: pare, olhe, escute. Templos não existem. Templo é o lugar onde o crente reza. Onde se reunirem crentes para rezar, ali é o templo.

Percorremos longos vales pontilhados de verde. São os oueds, rios subterrâneos que podem de repente vir à tona, afogando quem neles instalou sua tenda. Toda vida em El Hoggar reside nesses oueds. Aqui, as casas tomam uma configuração distinta das casas das aldeias. São tendas cônicas de capim, semi-enterradas na areia para proteção do calor diurno. Viajávamos no inverno, mas no verão a temperatura chega facilmente a 50 ou mais graus. As portas destas habitações, também de capim, são simbolicamente protegidas por um cadeado e uma grossa corrente metálica.

Verdade que São Paulo, hoje, não fica muito a dever a El Hoggar. Você pode estar trafegando ou passeando tranquilamente em uma avenida e ver-se de repente cercado pelas águas. Já houve caso de um motorista que se salvou porque sabia nadar. Mas os oueds têm mais charme, é claro.