¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, setembro 10, 2006
 
NÓS, OS IMORAIS



Não poucos articulistas trabalham com a falsa hipótese de que os comunistas são ateus. Nunca foram. Apenas trocaram o deus cristão por um outro. No caso, uma deusa, a História. Essa deusa teve uma encarnação humana, Stalin. Tanto que, em 1953, havia comunistas que não acreditavam em sua morte, afinal um deus não pode morrer. A fé absoluta na doutrina marxista era tal que um comunista sempre olhava com piedade para quem quer que dele discordasse: o coitado nada entendia do mundo. A Parusia proletária era dada como inelutável e a humanidade toda caminhava rumo ao comunismo. Poderíamos encher páginas e páginas listando os pensadores que perceberam este caráter religioso da nova doutrina. Vou ficar em apenas dois, Camus e Kazantzakis, que acompanharam de perto o grande embuste do século passado. Nada de novo no que segue. Apenas repito o que já escrevi, pois curta é a memória das gentes.

Escreve Camus, em O Homem Revoltado:
"O ateísmo marxista é absoluto. No entanto, ele restabelece o ser supremo ao nível do homem. A crítica da religião chega a esta doutrina na qual o homem é para o homem o ser supremo. Sob este ângulo, o socialismo é um empreendimento de divinização do homem e adquiriu certas características das religiões tradicionais".
"...o socialismo autoritário, que vai dessacralizar o cristianismo e incorporá-lo a uma Igreja conquistadora".
"O messianismo científico de Marx..."
O proletariado, "por suas dores e lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação".
"O movimento revolucionário, no final do século XIX e no começo do XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário".
"A revolução russa continua só, viva contra seu próprio sistema, longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia ainda está longe. A fé está intacta, mas se curva a uma enorme massa de problemas e descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo frente a Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre".

Um outro escritor do início de século, que viveu este confuso noivado bem antes que Camus, será ainda mais incisivo nesta aproximação. Em Voyages - Russie, Nikos Kazantzakis lembra como se fez a luz em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplória. Como em todas as religiões, tentavam difundir aquelas respostas tornando-as compreensíveis para a multidão. Kazantzakis fala da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças e as instruía como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo. Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: "somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião".

Ou seja, não estamos diante de ateus e sim de crentes que cultuam um novo deus. Não é pois de espantar que no passado de quase todos os antigos marxistas temos um cristão que renegou a própria religião. Tampouco causa espécie que o Partido Comunista sempre tenha sido forte em países católicos. A Rússia, é bom lembrar, era um dos maiores países católicos do mundo nos albores do século passado.

Que mais não seja, em O Idiota, através da boca do príncipe Mychkine, o ortodoxo Dostoievski há muito previra que o catolicismo romano originaria um socialismo ateu. Ateu em relação ao Deus dos céus e dos infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Morto o Deus judaico-cristão, deus nenhum outro à vista para sucedê-lo, o homem ocidental, órfão e carente de fé, irá criar um deus vivo.

Os russos, excitados pelo messianismo chauvinista e anti-semita de Dostoievski, já andavam procurando o seu. Por volta de 1850, Vladimir Soloviev erige o movimento revolucionário "Os Buscadores de Deus", que acaba não achando nada. Mas a semente está lançada. Será após o fracasso da revolução de 1905, que Maxim Gorki e Lunatcharski (futuro escritor oficial da era staliniana) fundarão o movimento "Os Construtores de Deus".

Gorki, que julgava a mentira necessária contra as "verdades nefastas", diz em uma carta de 1908, dirigida a Gregor Alexinski, que o "socialismo deve se transformar em culto". Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: "nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo". Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda. E antes de morrer envenenado por seu "Deus"), Gorki afirma: "Lá onde reina o proletariado não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé neste caso é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão".

Os tempos estão maduros para a emergência da nova fé. Marx e Engels fornecem o Livro, pois toda religião que se preze se fundamentará em um livro. Os revolucionários de 17 conquistam um território. Só faltava o Deus feito carne. Em Gori, na Geórgia, nasce o Menino.

Escreveu Ipojuca Pontes na semana passada: "Por se tratar de gente que não acredita em Deus, o intelectual de esquerda acha que para ele 'tudo é permitido': mentir, trair, caluniar, mistificar e - por que não? - através de artifícios diversos, tidos como legais, meter a mão no dinheiro do Estado. De ordinário, vivem pendurados em cátedras oficiais ou em polpudos empregos públicos, usufruindo parasitárias bolsas de estudos ou as benesses de projetos artísticos, cujos únicos atributos criativos têm sido a astúcia engendrada para convencer o burocrata de plantão a arranjar mais grana para o usufruto de ambos".

Nada dá mais prazer a um homem honesto do que falar de si mesmo, escreveu Dostoievski. Sou ateu desde meus verdes anos. Nunca fui isso que se chama de intelectual de esquerda, e muito menos de direita. Ateu sendo, nunca menti, nunca traí, nem caluniei nem mistifiquei e muito menos meti a mão no dinheiro do Estado. (Pelo contrário, o Estado me deve uma quantia polpuda em precatórios e até hoje está me caloteando. Se metesse a mão no dinheiro estatal, estaria apenas me ressarcindo). Nunca cometi sequer essas mentiras triviais que os machos usam para esconder suas infidelidades: tive não poucas mulheres e todas sabiam de todas. Mais ainda: nunca passei um cheque sem fundo, nunca furei uma fila, nunca joguei no bicho e nunca joguei papel nas ruas.

Meu círculo de relações, por uma questão de afinidades eletivas, é formado de modo geral por pessoas que não crêem em Deus. Não conheço nenhum que tenha mentido, traído, caluniado, mistificado ou posto a mão no dinheiro do Estado. Tivessem cometido qualquer dessas vilanias, não fariam parte de meu círculo. Exatamente por ter me libertado de qualquer veleidade religiosa, não procurei outra religião ao jogar ao lixo a antiga. Havia duas igrejas na cidadezinha em que me criei, a católica e a marxista. Mal larguei a católica, a outra me cercou, empunhando bibliografias e nobres ideais. Mas eu já começara minhas leituras filosóficas e o marxismo pareceu-me uma resposta muito rude a meu intelecto.

Um amigo de longa data perguntou-me certa vez como eu podia ser honesto sem acreditar em Deus. Estava repetindo, talvez sem saber, a frase que Sartre um dia atribuiu a Dostoievski: "se Deus não existe, tudo é permitido". (Digo que Sartre atribuiu porque Dostoievski jamais disse isso, pelo menos assim como está formulado). Mutatis mutandis, estava afirmando o que o articulista afirma: que nós, ateus, somos aéticos, imorais, desprovidos de escrúpulos. Ora, nunca precisei de deus algum para fundamentar minha ética. Não vejo como obrigatória a crença em um deus qualquer para que um homem seja honesto. Com Deus ou sem Deus, se tudo for permitido, a existência da comunidade humana é inviável.

Par contre, pergunte-se a qualquer um dos políticos que se beneficiaram de mensalões, propinas, esquema de sanguessugas, caixa 2, nepotismo, tráfico de influência ou tráfico de drogas, se ele acredita em Deus. Todos eles dirão que sim, pois não há no Brasil político que não acredite em Deus. Quem disser não, não será eleito. Quando interrogados, até mesmo o materialista dialético Fernando Henrique Cardoso e o Supremo Apedeuta vacilaram e saíram pela tangente. Hoje, os dois acreditam em Deus, lado a lado com a marxista desvairada, a Heloísa Helena.

Devagar nas pedras, meu caro Ipojuca. Não somos assim feios como nos pintam. Ateu mesmo não acredita nem nos deuses construídos pelo marxismo.