¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, setembro 03, 2006
 
SOBRE CONCEITOS



Em função de crônica passada, fui bombardeado com mails que em boa parte confundem conceitos como ética ou moral, norma religiosa e norma jurídica, pecado e crime. Tentarei destrinçar o imbróglio.

Nos últimos vinte anos, os petistas começaram a encher a boca com palavras como "a moral e a ética", assim juntas. Verdade que o Aurélio define moral como um conjunto de regras de condutas tidas como válidas e ética como o estudo dessas regras. Prefiro Cícero: "posto que se refere aos costumes, que os gregos chamam ethos, nós costumamos chamar essa parte da filosofia uma filosofia dos costumes, mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la moral". No Dicionário de Filosofia, de Ferrater Mora, lá está: "moral deriva de mores, costume, da mesma forma que ética de ethos e por isso ética e moral são empregadas às vezes indistintamente. Ferrater Mora vê inclusive um significado mais amplo no conceito de moral que no de ética. Seja como for, quando adjetivamos a palavra, ao dizer que algo é ético ou moral, a diferença entre os termos desaparece. Não por acaso, o Supremo Apedeuta adora falar em ética e moral. Quanto menos se conhece as palavras, mais se as maltrata.

Pretendem outros que moral - ou ética, como quiserem - coincida com lei. Assim, se aborto fere a moral, ipso facto é crime, mesmo que a lei o permita. Ora, tudo o que a lei não proíbe é permissível. Quando um Estado admite o aborto, qualquer cidadão até pode achar que é crime. Ocorre que, nessas circunstâncias, não é. Não é o palpite de qualquer cidadão que define algo como crime. Quem define o que é crime, pelo menos nas democracias ocidentais, é o Parlamento. Se os legisladores decidirem que esta ou aquela ação não é crime, permitida está. Para os que gostam de citar Aristóteles como um dos baluartes do pensamento cristão, é bom lembrar que o estagirita o recomendava como método eficaz para limitar os nascimentos e manter estáveis as populações das cidades gregas. Até mesmo para o insuspeito Santo Agostinho o aborto só seria crime quando o feto já tivesse recebido alma, o que deveria ocorrer após 40 ou 80 dias de sua concepção, conforme o feto fosse masculino ou feminino. Hoje, apenas 26% dos países não o consideram legal.

O mesmo diga-se do homossexualismo. Segundo a ONU, cerca de 80 países ainda tratam relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo como um crime punível com morte, em pelo menos sete Estados. Nestes 80 países, homossexualismo é crime. Nos demais 118, é fenômeno da órbita da ética.

Surge então outra pergunta: existe uma lei moral universal? Pode ser que exista em teoria. Na prática, não. Cada religião, cada nação, cada grupo social, cada época tem seus próprios preceitos morais. Que podem ter seus pontos comuns, mas também os divergentes. Não é crime ferir uma norma ética, a menos que esta coincida com a norma legal. Você pode até sofrer sanções de sua comunidade se ferir as regras morais nela vigentes. Mas ninguém pode condená-lo à prisão ou executá-lo por tais transgressões. Voltando ao aborto: se você vive em país em que abortar não é tipificado pela lei como crime, você pode até ser expulso de sua comunidade ou de seu círculo se tiver estimulado ou praticado aborto. Do ponto de vista legal, não cometeu crime algum.

Assim como não existe lei moral universal, tampouco existe lei jurídica universal. "Divertida justiça que um rio limita" - escrevia Montesquieu - "erro além, verdade aquém dos Pirineus". Só crê que existe lei jurídica universal o homem de tapa-olhos, que jamais saiu de seu país e pouco ou nada leu.

Pretendem os religiosos que todo pecado seja crime. Não é. Pecado é conceito da área teológica. Crime é conceito da área jurídica. Para pecados, existe o perdão. Para o crime, a punição. Verdade que, depois de Stalin, foi criado um outro parâmetro. "Foram erros", disse Stalin, ao referir-se ao massacre dos kulaks. O PT, reverente a suas origens, jamais fala de crime e punição. Nem de pecado ou perdão. Mas de erro e desculpa. Errou? Basta pedir desculpas e está redimido.

Mandamento é coisa de religião. Lei pertence à órbita do direito. Quem descumpre um mandamento peca e pode ser perdoado. Se o Marcola confessar seus crimes, basta que faça um sincero ato de contrição e está quite com a justiça divina. Com a dos homens é diferente. Quem infringe uma lei comete crime e deve ser condenado. Contrição não basta. Bastasse, não existiriam códigos penais nem prisões. Padre perdoa tudo. Dependesse dos padres, o Marcola estaria livre como um passarinho.

O "não matarás", antes de ser preceito jurídico, foi preceito ético-religioso. Pertencia, inicialmente, ao universo teocrático. Mesmo assim, era muito relativo. Jeová, o redator das tábuas, matou à vontade antes de redigi-las. Continuou matando com gosto depois de promulgá-las. E promete matar mais quando vier o Cordeiro. Apanhe a Bíblia. Quantos homens, quantos povos, exterminou Satã? Nenhum. Jeová massacrou com entusiasmo. Existem leis morais objetivas? - me pergunta um leitor. Não existem - respondo. O "não matarás" é o mais perfeito exemplo.

O preceito só se torna objetivo quando toma a forma de lei. O Estado sente-se obrigado a definir, com precisão, quando se pode matar. Pode matar o soldado durante a guerra e este é seu dever. Pode matar um homem ameaçado, em sua legítima defesa ou de terceiro. Pode matar o Estado, quando pune um crime. Fora estas circunstâncias, matar é crime. Jeová não teve preocupação nenhuma em regulamentar o "não matarás". O Estado tem.

O preceito religioso concerne aos adeptos de uma religião. O preceito jurídico concerne a todos os cidadãos, quaisquer que sejam suas religiões. O preceito moral diz respeito a grupos que têm esta ou aquela visão de mundo. A lei enquadra todo cidadão, não importa o que este cidadão pense do mundo. O conflito surge nas teocracias, quando Igreja e Estado se confundem, o preceito religioso se impõe e o conceito de pecado acaba se tornando crime. Já cheguei a sugerir que cristãos deveriam ser punidos quando praticam aborto, afinal consideram o aborto um crime. Aos demais, seria permitido. Não faltou quem julgasse ser absurdo ter diferentes legislações para diferentes cidadãos.

De fato, é. Mas no Brasil já tem. Deputados e ministros têm foro privilegiado, inacessível aos demais cidadãos. Os sem-terra podem invadir terras e prédios, depredar, saquear e nenhuma sanção lhes é imposta. Índio pode matar, estuprar, interditar rodovias, manter reféns em cárcere privado e por isso não são punidos. Menores de 18 anos têm carteirinha de 007, podem matar à vontade e nenhuma prisão firme lhes será atribuída. Absurdo a mais, absurdo a menos, tanto faz como tanto fez.

Lei é sinônimo de justiça? Nem sempre. A lei sempre foi uma tentativa de se chegar à justiça. Por isso é sempre renovada e aperfeiçoada. Para o brasileiro contemporâneo, sem ir mais longe, matar uma mulher por razões passionais é crime. Nem sempre foi assim. Nestes dias, Doca Street está lançando um livro no qual relata o assassinato de Ângela Diniz, em 1976. Antes deste caso, os júris aceitavam a tese de legítima defesa da honra. Há trinta anos, matar a própria mulher era perfeitamente legal. Hoje já não é. No mundo muçulmano, matar a mulher que tem relações com outro homem, é não só ético, como também legal e justo.

Quando a legalidade se afasta irremediavelmente de qualquer ideal de justiça, surgem as revoluções. Mas as revoluções do século passado se revelaram remédio pior que a doença. Quando uma comunidade é doente, a doença passa a ser norma e a ninguém ocorre rebelar-se. Diga a um muçulmano que é criminoso cortar o clitóris de uma mulher. Ele vai achar muito estranha sua maneira de ver o mundo. A própria mulher talvez também a ache.

Em meus dias de guri, transgredi com gosto os preceitos éticos da cidadezinha em que vivia. Nunca me agradou portar cilícios. Por tê-los transgredido, fui expulso da cidade. Até hoje porto esta expulsão como comenda, emblema de minha hybris juvenil. Me senti como um Cortez queimando suas naus e pronto para enfrentar qualquer adversidade. Teria uns 16 anos. Como cachorro que se sacode para secar-se, joguei para longe de meus ombros também os preceitos religiosos. Senti então uma extraordinária sensação de liberdade. Dos preceitos éticos ou religiosos, mantive apenas aqueles que coincidem com os códigos penal ou civil. Bem entendido, cultivo até hoje uma ética, particular e muito rigorosa, mas que pouco coincide com as éticas vigentes.

Resumindo: não temos porque aceitar qualquer ética que nos seja proposta. Nada impede que construamos a nossa. Homem sem religião é como peixe sem bicicleta. Quanto à lei, dela ninguém escapa. Pelo menos em país decente.