¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 23, 2006
 
AD USUM DELPHINI



Em minha última crônica, reproduzi trechos do livro Memórias Sexuais no Opus Dei, de Antonio Carlos Brolezzi, ex-numerário da organização. Tenho recebido não poucas mensagens de protesto, nas quais sou pichado ora como ateu, ora como herege, ora como infame. Houve até mesmo quem sugerisse que devia escrever em jornais bolcheviques. Ateu, creio que todos saibam que sou, e não vejo nenhum desvalor nisso. Vivemos em um Estado laico, não? Longe vão os tempos em que ser ateu era o caminho mais rápido para a fogueira. Ou alguém quer voltar àquela saudosa era?

Quanto a me recomendar para a imprensa comunista, creio que o leitor jamais deve ter lido as dezenas de crônicas que escrevi - já não digo ao longo de minha vida, mas pelo menos neste jornal - contra os bolches e seus compagnons de route. Nossa época está cheia de madalenas arrependidas, que um dia lutaram pela ideologia comunista e hoje fazem confiteor. Nunca fui madalena e muito menos arrependida. Quando havia abandonado o cristianismo, lá pelos 17 anos, fui cercado pelos camaradas. Perderam seu tempo. Eu já estudava filosofia e tinha elementos suficientes para julgar a precariedade do marxismo. Em meus dias de universidade, um amigo me definiu: "tu estás contra toda tua geração". Levei alguns anos para entender a frase. Ele queria dizer que eu não era marxista.

Curiosamente, não li uma palavra sequer contra o depoimento de Brolezzi, o cerne de minha crônica e autor das denúncias contra a Opus Dei. Verdade que, ao final da crônica, dei um rápido depoimento pessoal de meus dias de juventude, quando os padres queriam reprimir minha sexualidade. (O que foi muito oportuno, pois reagi e joguei fora a doutrina toda). Mas minhas considerações são apenas uma nota de pé de página ao livro do atormentado ex-numerário. Há quem fale, vagamente, em calúnias contra a Opus. Ora, se são calúnias, que se processe o autor. No entanto, pela reação de alguns leitores, parece que o autor do livro é este que vos escreve.

Isto é o de menos. O que me espanta nessas mensagens todas é o desejo expresso de expulsar-me do Midiasemmascara. "Sinceramente não consigo entender, não consigo captar, a razão da couraça de proteção que este MSM estende por sobre o tal Janer Cristaldo, o infame. Pela segunda vez uma minha mensagem de protesto contra um, digamos, artigo deste senhor não foi publicada, e nem sequer tive a delicadeza de receber uma resposta. Este site é conservador? É mesmo? Então por que vocês insistem em proteger as blasfêmias deste tal Cristaldo, o infame". Sintomático que o leitor tenha me pespegado o adjetivo infame. Era o mesmo empregado por Voltaire, quando bradava: Écrasez l'infâme! (Esmaguem a infame). Só que infame, para Voltaire, era a Igreja Católica.

Nada mais prazeroso para um homem honesto do que falar de si mesmo, diz um dos personagens de Dostoievski. É muito fácil soltar um insulto ao vento: fulano é infame. Ainda mais quando não se explica porque. O leitor me acusa de blasfemo. Ao que tudo indica, porque teço críticas à Igreja Católica. Ora, se assim for, boa parte da humanidade é blasfema, pois críticas à Igreja é o que não falta ao longo da História. Blasfemos seriam também os judeus, os luteranos, os protestantes, os evangélicos, isso sem falar nos marxistas, pois houve época - antes que padres católicos optassem pelo marxismo - em que os comunistas eram inimigos declarados do Vaticano. Eu fui católico, conheço bem a doutrina católica, tenho toda uma estante em minha biblioteca sobre religiões, cristianismo e catolicismo e não costumo pregar prego sem estopa. Dessa estante constam várias bíblias, mais a Torá, mais a bíblia judaica (recentemente editada no Brasil) e também um Alcorão. O leitor em questão, citando Gustavo Corção, me compara aos "cretinos de O Pasquim". Mais respeito, por favor. Eu conheço o tema sobre o qual escrevo e nada tenho a ver com aqueles moleques medíocres das esquerdas de Ipanema.

Que leitores discordem do que escrevo, entendo. Acho muito engraçado quando um leitor me escreve: "desculpe discordar, mas..." Ora, discordar é direito inalienável de todo leitor. Ninguém precisa pedir desculpas para discordar. Diga-se de passagem, gosto quando leitores manifestam discordâncias. Caso contrário, estaria escrevendo para mim mesmo. Que me contestem e me xinguem, também entendo. Mais difícil de entender é que pretendam calar-me. A impressão que tais leitores me passam é que querem um jornal ad usum Delphini. Aos jovens que chegaram tarde - ou não chegaram - às aulas de latim, explico. A expressão tem suas origens na França, onde vinha estampada na capa dos textos clássicos destinados à instrução do filho do rei Luís XIV, herdeiro do trono, dito o Grande Delfim. A coleção ad usum Delphini compreendia 64 volumes, censurados pelo duque de Montausier, sob a supervisão de Bossuet, um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino.

Neste sentido, os zelosos guardiões da fé cristã em nada se distinguem dos velhos marxistas. Após 64, surgiram vários jornalecos católicos ou marxistas - Brasil Urgente, Movimento, Opinião, Versus - nos quais a uniformidade de pensamento era de um tédio atroz. Os artigos todos desses jornais levavam sempre a uma só conclusão e quem lia uma edição havia lido todas. Seus leitores os liam apenas para reforçar o que já pensavam. Não encontrávamos surpresa alguma em seus textos, nenhuma idéia nova, ou pelo menos diferente, que mais não fosse.

É o que parecem pretender certos leitores deste jornal: uma uniformidade de exército, uma proibição a qualquer olhar diferente. Mestre Corção - como diz o leitor - cita a epístola de São Paulo aos Gálatas: "Ainda que eu mesmo, ou um anjo descido dos céus, vos anunciasse outro evangelho e não este que vos anunciei, seja anátema".

Seja anátema para os cristãos, meu caro. Vivemos em um mundo plural e não me parece que o MSM seja porta-voz de qualquer religião. Leio dois ou três jornais por dia e eles estão repletos de reportagens ou artigos que não me agradam. Não será por isso que deixarei de lê-los. Pelo contrário, é por isso que os leio. Preciso saber o que pensam apparatchiks como Frei Betto, Leonardo Boff, Marilena Chauí, Tarso Genro, Emir Sader, preciso saber até mesmo o que Lula pensa que pensa. Se desconheço o que pensam os velhos bolcheviques, não tenho argumentos para combatê-los. Minha biblioteca, além de abrigar centenas de obras cristãs ou católicas, concede também um largo espaço aos autores comunistas. A derrota é certa quando não se conhece o inimigo.

Meu fanático leitor me faz lembrar um colega marxista de jornal, em meus dias de Caldas Júnior, em Porto Alegre. Estávamos em 73, por ocasião do golpe no Chile e ele fazia plantão no Correio do Povo. Quando se tornou inevitável a queda de Salvador Allende, ele não teve dúvidas: desligou o telex. Estabeleceu seu próprio ad usum Delphini. Como se, interrompendo o fluxo de notícias, conseguisse desviar os rumos da História. Dia seguinte, o editor teve de pedir ao jornal concorrente os telegramas das agências internacionais.

Meus fanáticos leitores (falo no plural porque vocês são legião): esse desejo de um jornal de pensamento único em nada difere do sonho de tiranos do século passado, desde Stalin a Mao, passando por Envers Hodja, Pol Pot, Ceaucescu e Fidel Castro. Vocês caíram em país errado. Uniformidade de pensamento, hoje, só na Pravda, no Gramma, no Osservatore Romano. Vocês pedem uma imprensa que o PT adoraria ter.

Neste Brasil de hoje, nem vocês nem o PT a terão.