¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 16, 2006
 
L'ISLE ADAM E OS INIMIGOS DA NOITE



O advogado norte-americano JH Huebert pretende apresentar na Conferência Astronáutica Internacional, que acontece essa semana em Valência, na Espanha, um documento defendendo a presença de painéis publicitários na órbita do planeta. Huebert defende a instalação de outdoors no espaço para que fossem vistos da Terra, com ajuda de um telescópio. Claro que tal idéia só podia ter surgido do bestunto de um cidadão do país de Superman.

Há uns bons dez anos, já comentei um desses projetos megalômanos. Na época, era um russo, Vladimir Syromyatnovik, que pretendia iluminar cidades imersas na escuridão boreal, em uma faixa que ia do Canadá à Sibéria, passando inclusive pelo norte da Europa. Para isso, utilizaria um sistema de espelhos de 25 metros de diâmetro, colocado no espaço pela nave Mir. A brilhante idéia acabou indo para o lixo das idéias bestas, para felicidade dos que amam as noites.

Villiers de l'Isle Adam (1838-1889) é um visionário escritor francês de meados do século XIX. Filho de uma família nobre e decadente, deixou obra curta mas perturbadora. Entre eles, os livros Contes Cruels, Noveaux Contes Cruels, Histoires Insolites e L'Eve Future. Em um de seus contos, "L'Affichage Céleste", nos relata o projeto de M. Grave, um engenheiro - americano, é claro. Surpreso com a inutilidade das azuladas abóbadas celestes, que para nada servem a não ser para desenfrear a imaginação doentia dos últimos sonhadores. O céu precisava ser elevado à altura da época. Por que não retirar algum lucro desse imenso espaço estéril e vazio? Após muitas viagens e pesquisas, M. Grave aperfeiçoou lentes e refletores gigantescos, com os quais pretendia garantir às grandes indústrias e mesmo aos pequenos negociantes, o recurso de uma Publicidade Absoluta.

Após o entardecer, uma animação inusitada, "que só os interesses financeiros são capazes de proporcionar", tomaria conta dos espaços celestes. Potentes projetores lançariam, a partir de colinas, anúncios de echarpes rumo ao fundo do céu noturno, em algum espaço entre Sirius e Aldebarã. Entre as patas da Grande Ursa leríamos propaganda de espartilhos. A polícia projetaria nos céus fotos cem mil vezes ampliadas de criminosos, os políticos teriam seus sorrisos expostos sob a estrela Beta da Lira.

Mais de século antes de JH Huebert, L'Isle Adam antecipava ironicamente sua invasão dos espaços celestes. Evidentemente, nestes nossos dias televisivos, teríamos horários nobres e espaços privilegiados. A abóbada celeste seria o preferido de todos os gigolôs do absoluto e criadores de religiões. Imagine o leitor o poder de persuasão de um Cristo de braços abertos no entardecer, convidando os mortais a aderir à sua doutrina.

Quase quatro décadas mais tarde, em A Sinfonia Pastoral, André Gide evocava o mistério das noites. Nesta sofrida novela, um velho pastor anglicano, apaixonado por uma menina cega, pergunta-se: "Est-ce pour nous, Seigneur, qui vous avez fait la nuit si profonde et si belle?" A boa e velha noite, que embalou durante milênios o sono da vida no planetinha, está virando luxo de privilegiados. Hoje, se quisermos nos deixar envolver pela sua magia ancestral, precisamos viajar, e cada vez mais longe.

A invasão das abóbadas, maldição entrevista por L'Isle Adam no século XVIII, foi protelada. Agora paira sobre as noites, cada vez mais distantes de nós, a ameaça de Mr. Huebert. Que, felizmente, acabará também na lata de lixo aquela.