¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, outubro 27, 2006
 
PARA ONDE?


Uma obscura aposentada do Rio de Janeiro, Maria Dora dos Santos Arbex, de 67 anos, tomou as manchetes dos jornais nas últimas semanas. Ela baleou com uma arma sem registro um mendigo que tentou assaltá-la. A história se repete. Nos anos 80, uma velhinha teve sua casa invadida por um assaltante, em alguma cidade do oeste paulista. Tinha um revólver e defendeu-se. Já não lembro se matou ou apenas feriu o bandido. Na época, portar arma era crime apenas contravenção penal. Mesmo assim, aguerridos militantes dos tais de Direitos Humanos protestaram contra a senhora e conseguiram desarmá-la.

Já não lembro o que foi feito da vovó paulista. Tenho acompanhado a saga da vovó carioca, que agora arrisca a ir para a cadeia, pelo crime inominável de ter-se defendido. Ou seja, nos dias que correm, aquela bela doutrina da legítima defesa passa a ser letra morta. O bandido sempre andará armado, isto faz parte de seu ofício. Quanto à vítima, se estiver armada, incorre em pena de um a três anos de prisão, mais multa.

Talvez a vovó hedionda só esteja em liberdade em virtude do absurdo flagrante que constituiria sua prisão. Para homenageá-la, a Câmara Municipal carioca concedeu-lhe a medalha Pedro Ernesto, a mais alta condecoração do Rio. Na ocasião, a senhora Arbex pediu leis que proíbam moradores de rua de terem filhos e até que fossem jogados em alto-mar. Conclamou ainda as mulheres cariocas a um mutirão para tirar mendigos das ruas. "Não quer ficar em albergue, fica no meio do mar. Bota num navio e descarrega longe".

A senhora Arbex é uma pessoa rara em nossos dias. Não tem papas na língua e ainda não se deixou contaminar por esse pensamento muito católico que concede a mendigos o direito de morar nas ruas. Só não estou de acordo com sua proposta de jogá-los no mar. Me parece ser mais factível nos jogarmos no mar e deixar os mendigos em terra. Pegar um transatlântico e fugir deste insensato mundo, onde uma pessoa arrisca ir para a cadeia por ter exercido o direito de legítima defesa.

Há um projeto japonês de uma ilha flutuante, com capacidade para 40 mil habitantes. É o número de cidadãos que Platão considerava ideal para sua República. Por enquanto é sonho, ma chi lo sa? Não sei se terei a aventura de nela habitar, mas bem que me agradaria ficar navegando por mares desconhecidos o resto de meus dias. Uma vez por mês, teríamos reunião de condomínio e decidiríamos, em assembléia, para que nortes rumar. A idéia da vovó revelou falta de visão.

Se bem que em nossos dias até os mares estão poluídos por mendigos. No Mediterrâneo, por exemplo, minha nau e refúgio arriscaria abalroar uma precária patera abarrotada de famintos africanos. No Adriático, poderia ter de resgatar famintos romenos ou albaneses. Isto me lembra um antigo filme, cujo título já não recordo. Alienígenas invadem a terra e começam a tomar o corpo dos terráqueos. O herói se insurge contra a invasão mas não consegue contê-la. Quando o planeta está totalmente dominado, ele diz à sua companheira: "Vamos fugir para algum lugar onde eles não tenham chegado".

Ela, já com a voz rouca dos contaminados, pergunta: "Para onde?"