¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, novembro 12, 2006
 
INGENUIDADE E MALANDRAGEM



Pesquisa divulgada na semana passada pela ONG Transparência Internacional mostra que o País teve uma "piora significativa" no nível de percepção de corrupção. Na pesquisa anterior, o Brasil ficou em 62º lugar em uma lista de 159 países. Agora, caiu para 70º em 163 nações pesquisadas. Entre as nações percebidas como menos corruptas, estão empatadas Finlândia, Islândia e Nova Zelândia, com 9,6 pontos. Dinamarca, Cingapura, Suécia, Suíça, Noruega, Austrália, Holanda. Entre os últimos da lista, por ordem decrescente: Guiné Equatorial, Uzbequistão, Bangladesh, Chade, Congo, Sudão, Guiné, Iraque, Mianmá, Haiti. O Brasil divide o 70º lugar com China, Egito, Gana, Índia, México, Peru, Arábia Saudita e Senegal. Para fazer o ranking mundial, a Transparência Internacional usa como base de dados várias pesquisas feitas em diferentes países por instituições como o Banco Mundial, o Fórum Econômico Mundial e agências de avaliação de risco. A pontuação vai de zero (pior situação) a dez (situação ideal).

Não é preciso ser um especialista em geografia política para perceber que nos países ricos a corrupção é ínfima, enquanto impera em países pobres. Seria a honestidade uma virtude típica de ricos? Ou ricos não precisam ser desonestos? Estas perguntas não têm muito sentido, afinal mesmo nos países pobres quem se beneficia da corrupção são sempre os ricos. Melhor buscar por outro lado. Entre os países menos corruptos, Cingapura à parte, predomina uma cultura protestante. Entre os mais corruptos estão os muçulmanos. Os católicos Brasil, México e Peru dividem o meio de campo com China, Egito e Arábia Saudita.

Em meus dias de Suécia, vivi em uma sociedade onde a honestidade era a regra. O Estado confiava no cidadão e o cidadão confiava no Estado. O mais odiado dos crimes, naqueles dias, era a sonegação de impostos. Quem sonegava estava cometendo um crime de lesa-igualdade. O problema é que o imposto de renda podia chegar até 95% e houve inclusive o caso caricatural da escritora Astrid Lindgren em que chegou a 102%. Personalidades como Ingmar Bergman ou Ronnie Peterson chegaram inclusive a trocar de país para fugir à fúria tributária do Estado sueco.

Havia uma ingenuidade muito grande nesta confiança do Estado no cidadão, mesmo estrangeiro. Bastava um migrante dizer que era perseguido político e as autoridades acreditavam piamente em suas declarações. (Hoje, diante da invasão muçulmana, os suecos devem estar se arrependendo amargamente disto). Se os suecos eram ingênuos, nós latinos, brasileiros, somos malandros. Sem malandragem, não há corrupção.

Em minha volta ao Brasil, após um ano de Estocolmo, tive uma percepção brutal destas duas mentalidades. Volto a contar episódio que já devo ter contado e que gosto de recontar. Certo dia, fui postar uma carta. Na fenda de uma caixa automática, pus uma moeda de duas coroas. Em vez de uma cartela com selos, recebi de volta um impresso com um pedido de desculpas. Não havia mais selos na caixa. Para recuperar minhas coroas - ou os selos - teria de telefonar para um número X.

Decidi pagar para ver. Estava na Suécia há menos de um mês e falava o sueco precariamente. Os problemas começaram com meu nome, que na língua lá deles se pronuncia Ianér. Do outro lado da linha, uma voz me pediu para soletrá-lo. E como é que se diz jota em sueco? Pacientemente, a moça aventou outras palavras. Confirmei a letra que, descobri então, pronunciava-se "ií". Mas o pior estava por vir. Eu morava na Öregrundsgatan, informação que tampouco foi fácil de passar. Muito bem - disse a moça - amanhã, às 11hs, o senhor receberá o equivalente, em selos, a duas coroas. O senhor prefere a série do rei ou a série da ponte?

Recém-chegado naquelas bandas, apenas balbuciando o idioma local, eu preferia mesmo era piedade. Qualquer uma, respondi. Dia seguinte, mal passavam dois ou três minutos das onze, o carteiro enfia um envelope em minha porta. Nele vinham os selos, série do rei, com um compungido pedido de desculpas dos Correios.

Estou na Europa! - pensei, incrédulo. Este terá sido o episódio mais marcante de meus dias de Suécia. Lá, o Estado respeitava os direitos mínimos do cidadão. Encerradas minhas deambulações por aqueles nortes, voltei ao Brasil. Em Porto Alegre, fui telefonar de um orelhão e a máquina engoliu a ficha. Chamei a CRT, expliquei o caso, perguntei como devia fazer para telefonar. Ora, ponha outra ficha - me respondeu a moça.

Subi em meus tamancos. Eu quero a minha ficha de volta. A moça disse nada poder fazer. Pedi para falar com seu superior. Ela me passou alguém que também me sugeriu pôr outra ficha. Respondi que não pretendia pôr ficha nenhuma, queria a minha de volta, etc., pedi falar para com seu superior, falei com outro superior, repetiu-se toda a lengalenga e esta terceira e última instância me bateu o telefone na cara. Indignado, fui à televisão reivindicar meus direitos. O próprio jornalista que comentou o fato deveria estar pensando que eu havia voltado pirado da Escandinávia, contaminado talvez por alguma escandinavite aguda. Nada disso. Eu havia vivido em um país onde o cidadão era respeitado. O Estado confiava que o cidadão era honesto e lhe retribuía na mesma moeda.

Este clima de confiança mútua perpassa - ou perpassava - as relações entre Estado e cidadão na Suécia. Lembro de quando fui renovar minha permissão de permanência. O policial, ao saber que eu era brasileiro e jornalista, me ofereceu imediatamente asilo político. Ora, eu saíra pela porta da frente de meu país, não queria asilo político. Eu saíra do país do carnaval e do futebol e havia chegado no país de Bergmann, Karin Boye, Lagerkvist. Queria, isto sim, asilo afetivo e espiritual. Recusei. Os brasileiros da colônia estocolmense, todos malandros, ao saber de minha recusa, quase me lincharam. "Cara, tens idéia do que estás perdendo?"

Olhemos para a tabela da Transparência Internacional: a distância entre país de corrupção mínima e país de grande corrupção tem as mesmas proporções da distância entre país desenvolvido e subdesenvolvido. Só que na razão inversa: mais corrupto é o país, mais subdesenvolvido ele é. Com sua ingenuidade, os suecos construíram um país rico e hoje invejado, apesar de seus atuais problemas, decorrentes da imigração árabe e africana. Com nossa malandragem, construímos este nosso monstrengo, onde cinturões de miséria e ressentimento estão estrangulando aos poucos os centros urbanos. Em nada surpreendem, neste ranking da corrupção, as posições de Brasil e Suécia.