¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, janeiro 26, 2007
 
PARIS, PENTIMENTO



Estou de volta a Paris. A Paris e Madri. Olho meu passaporte e noto que nos últimos cinco anos tenho voltado sistematicamente a estas duas cidades. O mais das vezes, com uma esticada a Roma. São cidades que me encantam. E me impedem de conhecer outras terras. Quando estou pensando em fazer as malas rumo ao anecúmeno, a antiga tentação me acomete: e por que não Paris, onde perdi minha alma? Por que não Madri, que adoro tanto? O anecúmeno que me espere.

Quando me perguntam qual é minha cidade, a resposta é um pouco complicada. Se for aquela em que vivi a maior parte de minha vida, então sou paulistano. Estou em São Paulo há doze anos. Jamais estive parado tanto tempo em uma mesma geografia. Se minha cidade for aquela em que nasci, então não tenho nenhuma. Nasci no campo. Se for aquela em que vivi minha adolescência, então é Dom Pedrito, onde estudei cinco anos. Mas poderia ser Porto Alegre, onde fiz Filosofia e elegi profissão, escolhi a amada e amores outros. No Portinho fiquei dez anos. Em Florianópolis, oito. Mas de Florianópolis posso dizer tranqüilamente: não é minha cidade. Se nossa cidade é aquela da qual se chora ao partir, a minha então é Madri, onde fiquei menos de ano. Mas poderia também ser Paris. Quatro anos de Paris marcam muito mais que dez de Porto Alegre ou dezesseis de São Paulo. Neste janeiro hibernal, estou de volta a esta cidade que nos rouba parte da alma e jamais devolve.

Paris, pentimento. A pátina dos séculos parece ter escondido esta cidade sob centenas de pentimentos superpostos, de modo a fazê-la entregar-se indistintamente a todos que a buscam, mas exibindo a cada um uma face diferente. Se todos os caminhos levam a Roma, não menos verdadeiro é que todos passam por Paris. Em uma emissão da Antenne 2, disse certa vez Carlos Fuentes: América Latina, capital Paris. Não deixa de ter razão. Como tampouco podemos negar razão ao argelino ou tunisiano que diz: Maghreb, capital Paris. Há qualquer coisa de misterioso nesta cidade que investigador algum consegue explicar: a ela acorrem intelectuais do mundo todo, que deixam em seus países uma situação geralmente confortável, para viver em Paris em condições inferiores às de uma favela. Não estou exagerando. Quem um dia lá viveu como estudante ou exilado, com dinheiro escasso, sabe muito bem que um quarto de vinte metros quadrados é luxo para poucos. Paris é certamente a capital onde um maior número de pessoas vive nas piores condições possíveis na Europa. O problema decorre de sua própria geografia. A cidade é muito pequena, em vinte minutos de metrô a atravessamos de ponta a ponta. E atrai gente demais. Nela não existe sequer um metro quadrado a construir, a menos que se derrube o já construído.

Que Paris buscam os que buscam Paris? Confesso não ser o viajante mais adequado para responder a esta pergunta, embora aqui tenha vivido quatro anos e sempre a visite quando perambulo pela Europa. Meu mito era outro e situava-se mais ao norte. A França pouco me dizia, o paraíso me parecia estar no Reino dos Sveas. Em verdade, o mito era algo bastante genérico, poderia ser tanto Paris como Estocolmo, Roma ou Berlim. Víamos a Europa como una e homogênea, continente onde todos os cidadãos tinham seus direitos respeitados, onde polícia não espancava estudantes nem operários, terra de asilo onde todo imigrante ou perseguido político era recebido como ser humano. Viajantes, jornalistas e escritores nos transmitiam as delícias do bem-estar europeu, professores nos embriagavam com cultura européia. Das paisagens e monumentos se encarregavam as agências de turismo e institutos de línguas. Juro que ouvi falar, em aulas da Alliance Française de Porto Alegre, das eaux bleues de la Seine.

Viajei. E voltei. Segundo Aristóteles, o homem é um animal político. Mas antes de ser político talvez seja um animal cabeça-dura. Foram necessários vários meses após a volta para aceitar intimamente que havia visto o que de fato havia visto. Viajantes, não voltamos no dia da chegada ao país de partida, mas alguns meses ou anos depois, quando nossas convicções anteriores começam a desmoronar. Jornalistas e escritores não nos haviam dito que o bem-estar europeu repousava na exploração da mão-de-obra deste escravo do século XX, o imigrante. Que o desenvolvimento econômico e tecnológico deles depende em boa parte da venda de armas para as regiões quentes do globo. Nem que, nas avançadas sociedades européias, um cão tem mais status que um negro ou árabe.