¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, janeiro 27, 2007
 
PRIMEIRAS DESCOBERTAS



Vim morar aqui em 77. Já vacinado pela experiência escandinava, não alimentava maiores mitos em relação à Europa. Este desencanto, tentei equacioná-lo em Ponche Verde, romance de exílio e viagens, de descoberta do velho continente e redescoberta da América Latina. O final, evidentemente, não é feliz. (O romance, você pode baixá-lo de http://www.ebooksbrasil.com).

Cheguei no outono. Mas ao amarelo outonal ajuntava-se um amarelo excrementício que jamais esperamos encontrar em uma sociedade civilizada. Nos idos de 70, este foi meu primeiro choque ao flanar pelas ruas parisienses. O espetáculo nauseabundo das crottes nas calçadas era apenas a parte emersa do iceberg. Nesta estada au bord'elle, la Seine, mantive contato com colegas de todas as latitudes. Este é um dos encantos insuspeitos de Paris e tanto latino-americanos como africanos, negros ou árabes, refugiados do Leste Europeu ou asiáticos, eram todos unânimes ao manifestar seu espanto ante aquela emética ornamentação de uma cidade tão linda. A bem da verdade, as ruas de Paris hoje estão muito mais limpas que nos 70.

Para nós, latino-americanos, a imagem da França sempre estará associada aos ideais de liberté, egalité, fraternité. Revoltados ante a miséria e os desníveis sociais tremendos de nossos países, parecia-nos tácito que nas nações desenvolvidas européias tais problemas há muito tenham sido resolvidos. Basta alguns meses em Paris para constatarmos que a cidade em que estamos não é a que buscávamos.

Pequenos incidentes do dia-a-dia: um negro preterido na fila do correio ou da padaria. Um árabe que não pode alugar um studio pelo fato de ser árabe. Um prédio ou mesmo um bairro que se desvaloriza por ser habitado por africanos. Negros e árabes interpelados pela polícia porque têm a pele negra ou cara de árabe. Latino-americanos que, por serem negros ou terem traços levantinos, são alvo contínuo de perquirições policiais, como aconteceu com Gabriel Garcia Márquez. Como bom stalinista, usou o fato para condenar o Ocidente que o entope de dólares.

Sem falar nos faits divers da imprensa cotidiana: as brimades em bares envolvendo imigrantes; o vizinho que atira em uma criança árabe porque fazia ruído excessivo no pátio; o singular esporte tantas vezes praticados em fins-de-festa, tipo vamos-ver-quem-abate-primeiro-um-bougnoulle. Et j'en passe.

Descobrimos então o óbvio: a sociedade ideal não existe. Deveríamos saber antes de partir, mas o bicho-homem é antes de tudo esperançoso. Só há uma maneira de chegarmos a esta revelação: viver no país que julgamos ideal. O príncipe cambojano Norodom Sihanouk captou bem esta síndrome. Se tivesse de mandar estudantes para o exterior, os mandaria para Moscou. De Paris, todos voltavam comunistas.

O que mais me surpreendeu em meus dias de estudante no país da liberdade, igualdade, fraternidade, não foi a condição de cidadão de segunda classe do imigrante, nem o racismo palpável de Monsieur Dupont, mas algo que talvez cause pasmo a um francês: a inexistência do habeas corpus.

No final dos anos 70, Giscard d`Estaing propôs aux citoyennes et citoyens a instituição desta garantia fundamental da liberdade de cada indivíduo. Pasmo meu e pasmo dos franceses. De minha parte, não conseguia acreditar no que ouvia. Se Giscard propunha a instituição do habeas, evidentemente este não existia na estrutura jurídica do país. Quanto aos franceses, até os jornalistas tiveram de debruçar-se sobre enciclopédias para bem informar seus leitores. Como a proposta partia do poder, obviamente foi rejeitada. A França, como nação, perdeu uma oportunidade de proteger eficazmente seus cidadãos de abusos de autoridade.

Je n'ai jamais vu ça, reagiam meus interlocutores franceses, quando eu falava do habeas. Quem viveu em Paris, sabe que quando um parisiense assim fala é porque a coisa ou fato em questão não deve existir dentro dos limites do universo conhecido. Não me foi fácil convencer meus colegas de universidade que o instituto proposto por Giscard era, no Brasil, do conhecimento de qualquer prostituta de rua e muito mais usado que preservativos. A mais dura tarefa me esperava ao voltar ao Brasil, a de convencer amigos e leitores de que na França não existia o habeas corpus. Viajando e aprendendo...

De qualquer forma, hah vantagens nesta lacuna. Sem habeas, nao hah a industria do habeas. Estas impressoes sao de anos passados. Ao final destas reflexoes, falarei da Paris presente.