¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, fevereiro 03, 2007
 
POMBINHA MANCA



Como são as mulheres em Paris? me pergunta um leitor. Pelo que vejo, e nada diferem das mulheres de Porto Alegre. Duas pernas, um par de seios, uma boca, dois olhos, dois braços, das mãos, cinco dedos em cada, e assim por diante. Se vestem de um jeito muito sacana, é verdade, e em geral falam francês. Exceto no modo de vestir e de falar, nada vi de diferente nas mulheres de Paris ou Porto Alegre, Estocolmo ou rio. Assim leitor, eu diria que as mulheres de Paris, em princípio, de especial nada têm. Riem quando estão alegres, choram quando estão tristes, gemem quando... Prefiro falar de pombas.

Adoro pombas. Seu arrulho, se a muitos pode parecer fúnebre, a mim me parece carinhoso. Arrulhasse minha garganta como a de uma pomba, seria aquele rum-rum meu mais profundo diálogo com uma companheira. Acho que mais não se precisa dizer. Era muda, uma das mulheres mais inteligentes que conheci. Ao readquirir o dom da voz, readquiriu também o da palavra, e passou a complicar tudo. Foi o fim de nosso arrulhar.

Não me parece ser por azar que a pomba é um símbolo da paz. A pomba está sempre tranqüila, nada abala sua serenidade. Seu ruflar é carícia, não luta para manter-se no ar. Certa vez, na Piazza São Marco, ofereci ao pombaredo um pacotinho de pipocas. Fui assaltado por bandos, pousavam em meus braços e meu chapéu sem a menor cerimônia. Mas suas bicadas eram gentis, tinham mais o ar de quem pede do que o ar de quem toma.

Semana passada, no parque Montsouris, vi uma ironia do universo. Não era um par de xipófagos, tampouco o terneiro de duas cabeças ou cinco pernas. Mas os deuses foram indubitavelmente mesquinhos com aquela pomba.

Era manca.

Podia voar, é verdade. Mas caminhava pelo parque, insistindo em exibir ao mundo seu aleijão. Era tranqüila, como todas as pombas. Mancava resolutamente, com a paz dos justos, capengueava rumo aos jardins, rumo a seus insondáveis projetos.. E sua cauda assumia um trágico rebolado.

Ah! Pombinha manca, quanto me doeu te ver mancar! Tenho visto homens sem pernas, outros sem braços, e a estes chamamos heróis de guerra. Seu aleijão, chamamos heroísmo, pois se batem em nome de nomes. Ou infortúnio, deserdados que foram pelo deus Acaso. Mas em nome de que bate uma pomba suas asas? Sei, tuas asas ainda batem firme, mas por quer insistes em caminhas, que queres dizer com teu mancar?

Volto às mulheres. Moro ao lado da Cité Universitaire e o metrô que me deixa em casa é pródigo em mulheres lindas. Não francesas, mas geralmente estrangeiras que enfrentam Paris no peito e na raça. E para enfrentar Paris, toda estrangeira se mune de um mínimo de confiança física. Se escrevo que toda moça que enfrenta Paris mete os peitos pra frente e desafia o mundo, não estou usando uma imagem.

Tomei ontem o metrô Cité-Universitaire e à minha frente sentaram-se duas mulheres. Uma linda, alta, fornida, um poderoso par de coxas. Soberba. De botas. Me olhava de cima. E que me restava senão olhar de baixo? Esta contre-plongée já me deliciava.

Ao lado da moça alta e soberba, sentou-se uma velhota, baixinha e feia. Como a pombinha de Montsouris, também mancava. Perguntou-me as horas, tinha pressa de chegar a qualquer parte. Disse-lhe as horas e ela ficou resmungando qualquer coisa para si própria. Assim como destoava do universo a pombinha manca, assim destoava de Paris a velhota baixinha e feia. Mas a alta e soberba só só me inspirava desejo, vontade de refocilar-me naquelas botas que subiam até o regaço.

E a pombinha manca, rumo a seus mancos destinos, me encheu de ternura e entendimento.



Paris, 02/03/78