¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 05, 2007
 
YO, EL GUAPO



Certo dia, fiz as malas e fui cumprir meu exílio. Exílio voluntário, nada nem ninguém me forçava a sair do Brasil, a não ser um irremediável fascínio pelo desconhecido, mais precisamente pela Europa. Escolhi para aportar, sei lá por que razões, Barcelona. Mal piso em terra, uma espanhola linda como imaginamos que seja uma espanhola, agrediu-me:

- Que guapo!

Não devia ser comigo, decididamente não faço o gênero. Olhei em volta, não havia mais ninguém no saguão do porto, era comigo mesmo. Não é todos os dias que um mortal é assim recebido em terra estranha, que viva la España! Atrapalhado com as malas - levava todas minhas posses, o que não era muito, mas sempre pesava um pouco - saí em busca da maldita da consigna, disposto a enfrentar a atrevida na volta. Achei onde deixar minhas malas, mas perdi a catalã. Em todo caso, os augúrios eram favoráveis, começava pisando em Barcelona com o pé direito.

Se viajo à Europa, insisto em começar por um porto: Barcelona. E, ao voltar, despeço-me em outro porto: Barcelona. Não voltei a ver a espanhola, tampouco as outras que encontrei me disseram "que guapo!", por certo eram mais realistas. Mas se amo uma cidade na Europa, ela tem por nome Barcelona.

E não a elegi por amor à primeira vista. O coup de foudre ocorreu, é verdade. Mas sou duro na queda e decidi primeiro conhecer outros povos e paisagens, não iria render-me sem mais nem menos a uma cidade que envia suas mais lindas filhas ao porto para dizer "que guapo!" aos forasteiros. Continuei a peregrinação em busca sei lá de quê, provavelmente de mim mesmo.

Estive próximo ao Círculo Polar Ártico e voltei ao sul. Três cidades me fascinaram na Europa, Estocolmo, Paris e Barcelona. Comecei pela primeira, por gostar de desafios. Estocolmo era a mais distante, a mais cara, mais fria, mais hostil e mais estrangeira. Faço depois Paris, pensei, e na descida vou refestelar-me em Barcelona. Mas viver não é preciso e cá estou sem chegar a possuir a amada. Mas ainda não depus as armas.

Voltei várias vezes a Barcelona, cada vez mais apaixonado. Por pequenas coisas. Por exemplo, um pequeno café no Barrio Gótico, o Mesón del Café. É quase um cubículo, consiste em uma prateleira com bebidas, um balcão e dois ou três bancos. Ao fundo, há duas mesinhas, com lugar para no máximo cinco ou seis pessoas. O ambiente todo transpira antigüidade, a história pinga das paredes. É uma impulsão doentia, dirá o leitor, mas que fazer? Mal chego em Barcelona, deixo as malas no hotel e vou direto ao Méson tomar o cafezinho inaugural. Nem livrarias ou bares interrompem a caminhada pressurosa até o café. Cumprido este ritual, estou então disponível para os demais encantos da cidade.

Já que estamos próximos da Catedral, vamos à sardana. Diante de uma retreta, homens e mulheres amontoam casacos e sacolas na calçada, dão-se as mãos e dançam. A cena não deixa de ter toques buñuelescos, mas afinal estamos na Espanha. Pessoas que jamais se viram, das mais distintas nacionalidades, interrompem seus trajetos para dançar. Entra quem quer na roda. Quando se torna muito ampla, alguém puxa um grupo e forma outra roda, dentro ou fora da anterior. Em poucos minutos, várias rodas saltitam e giram em meio à multidão. A sensação de euforia e confraternização universal que nos envolve em meio a uma sardana talvez não possa ser experimentada em nenhum outro lugar ou data. Em poucos minutos, uma multidão amorfa de desconhecidos se transforma em um clube de velhos amigos. Condição para ser sócio: desembaraçar-se de casacos pesados e sacolas e dar as mãos ao súbito amigo que se apressa em nos estender a sua. Não sou exatamente um emotivo, mas uma sardana sempre me provoca um discreto nó na garganta. Não é todos os dias que vemos uma multidão de homens despidos de suas couraças e com armas depostas.



(Porto Alegre, Folha da Manhã, 10/01/77)

PS - Estou em Barcelona. Reproduzirei, nestes dias, crônicas de minhas primeiras impressões da cidade, quando por aqui aportei, há mais de trinta anos.