¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, fevereiro 06, 2007
 
YO Y LAS GUAPAS



Jamais levei muito a sério a famosa voz do sangue. Pelo menos antes de assistir a um flamenco. Já ouvira algumas canções flamencas e de cante hondo. À primeira audição, mais me pareceram uma sucessão de lamúrias e uivos guturais, mesclados com palmas e sapateado. Algo assim no gênero "ay, por qué mi madre no me matoooooo?" Enfim, estamos em Barcelona e consta que as bailaoras são as mais lindas mulheres de Espanha. Quem sabe não estaria lá - tenho robusta crença no Acaso - a atrevida que, em momento de patetice, deixei escapar no porto?

Tablao el Cordobés, nas Ramblas. Mal vou entrando, ouço as lamentações, ay, ay, ay, que no aguanto este hombre, este hombreeee me va a mataaaaar. E entrava uma rajada de castanholas e sapateado. Vai ser trágico assim no inferno, pensei. A saleta, com lugar para umas cinqüenta pessoas, estava quase lotada. Sentei-me próximo ao tablao, empunhei uma jarra de sangria y me quedé a mirar las guapas.

Há um consenso mais ou menos unânime de que as mais lindas mulheres do mundo estão na Escandinávia, mais especificamente na Suécia e Finlândia. A afirmação, como os silogismos dos estóicos e megáricos, é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. É verdadeira no sentido quantitativo, o biótipo da escandinava é o de uma mulher alta e esguia, duas imensas vantagens para uma mulher que se pretenda linda. Além do mais, lá por aquelas plagas, a ginástica diária desde os primeiros anos é hábito que acompanha cada um até a morte. O bom estado físico do sueco é tão generalizado que se alguém tem uma hipótese de barriguinha já não encontra nas lojas calças que lhe sirvam. Em Estocolmo, tropeçamos na rua a todo instante com mulheres que só imaginamos em filmes. Se quisermos ver aquelas louras oníricas nuas, basta dar um pulo ao primeiro sexklubb que encontrarmos. Por algumas coroas pode-se apreciar aqueles animais belíssimos em ação e, inclusive, ser convidado a passar ao palco, isto é, um colchão.

Vi as suecas e vi as espanholas. As suecas, nuas, se contorcendo em acrobacias sexuais. As espanholas, vestidas dos pés à cabeça, sapateando como mordidas por tarântulas em um tablao. E afirmo tranqüilamente: se as escandinavas são consideradas as mais lindas mulheres do mundo é porque as espanholas, por modéstia, se mantém hors concours. Nenhuma sueca, mesmo em pêlo, consegue transmitir a sensualidade de uma bailaora da qual só vemos a pele das mãos e do rosto. A espanhola, quando inventa de ser bonita, abusa.

Permaneci horas, completamente hipnotizado, fascinado pelo corpo de baile. Ao levantar-se para a dança, homens ou mulheres mais parecem um galo eriçando-se para a rinha. Por vezes, uma bailaora mais experiente, ao solar, permanece imóvel, sacudindo apenas o queixo ao ritmo das palmas. É como se toda dança e paixão se concentrasse naquele queixo. Já nos primeiros minutos do solo um odor acre de axilas põe mais fogo ao baile. Os "olés! Que guapa! Loado sea el hombre que tiene por debajo!" saltam da platéia. E quanto mais entrada em anos é a bailarina, mais sua arte fascina. Lá pelas tantas, me pergunta uma delas:

- Pero le gusta el flamenco, eh?

Sí, claro, mucho, respondo. Outras também me interpelam. Desconfio de algo errado. Olho para trás a sala já está vazia. Um corpo de baile de umas quinze pessoas dançava e cantava exclusivamente para mim. Agradeci meio sem jeito, apanhei casaco e chapéu, disse buenas noches e me perdi, em paz comigo e com o universo, na madrugada e nas ruelas do Barrio Gótico.





(Folha da Manhã, 11/01/77)