¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 07, 2007
 
YO Y LAS SEVILLANAS



Há viajantes e viajantes. A espécie mais comum é a que costumo chamar de colecionadores de catedrais. Buscam paisagens e monumentos, em especial catedrais. Conheci vários destes colecionadores quando lhes confessei jamais ter subido na Torre Eiffel ou assistido um espetáculo no Moulin Rouge. Em catedrais, confesso que entrei em algumas, mas isto pouco ou nada acrescenta às minhas viagens. Tais viajantes não merecem este título. Pertencem à subespécie turistas, raça repelida por qualquer viajante que se preze.

Sou colecionador, mas não exatamente de monumentos. Interesso-me pela história de qualquer país, é claro, mas prefiro misturar-me a seu presente. Gosto de rostos, frases, pessoas, bares, odores, sensações. Há quem considere que viajante inteligente é o que vê museus e catedrais por fora e bares e restaurantes por dentro. Pode ser. Mesmo assim não resisti aos delírios de Gaudi, Goya e Dali. Seja como for, obra de arte alguma toma o lugar em minha memória do sorriso provocante daquela barcelonesa no porto, de um vinho bebido na bota com dois operários numa cabine de trem, pan y chorizos repartidos em meio a palmas e canções. Ou uma advertência em uma tasca:



ES TERMINANTEMENTE PROHIBIDO
DAR PUÑETAZOS EN LA TABLA



Ou uma quadrinha popular:



Dale limosna mujer

Que no hay en la vida nada

Como la pena de ser

Ciego en Granada.




Ou a saborosa pronúncia do catalão, que chega a nossos ouvidos brasileiros como eco ancestral de qualquer coisa que se aninha em nosso inconsciente:



Si veniu per bé, entreu, si us plau.

Si veniu per mal, no passeu el portal.




Em uma dessas deambulações, em que me entrego ao prazer de perder-me em cidades que não conheço, creio ter intuído alguma coisa da magia do flamenco, seu poder de transfiguração de uma mulher.

Estava em Sevilha. Antes de ir a um tablao resolvi flanar pelo Barrio de Santa Cruz. Estou tomando um cafezinho, duas moças entram no boteco para telefonar. Alguma coisa, sei lá o quê, me chama a atenção. Examino as duas do ocipital ao metatarso. Ambas me retribuem o exame, em silêncio. Me olham nos olhos, sem piscar, como quem pergunta:

- Que é que há?

Enunciassem a pergunta, eu responderia:

- Honestamente, não sei. Mas algo há.

Uma empatia qualquer me compelia a confraternizar com as sevilhanas. Como estava psicologicamente preparado para um flamenco naquela noite, sorvi meu café e continuei meu passeio sem rumo pelo Casco Viejo da cidade, espiando becos, bares e pessoas. As moças caminhavam à minha frente, uma pequena e leve, a outra grandalhona, pesada, caminhar duro, mais para elefante que para gazela. Logo as perco. Chego ao tablao El Gallo um pouco cedo. Quando entram as bailaoras, lá estão as duas.

A moça mais pequena e leve não era mais uma moça pequena e leve, mas uma mulher cheia de fogo e canção. A grandalhona, de andar elefantino, era agora um furacão de rendas e meneios. E lá estou eu de novo, boquiaberto, meditando sobre esse estranho ritmo que de muito longe me percute no sangue e que transforma aliás em gazelas, meninas em mulheres, velhas em jovens.

Sardana, zambra, cante hondo, flamenco e tantas outras... Se existe um povo nascido para a dança e a canção, com perdão dos italianos, este povo é o espanhol. Uma mulher em uma janela grita qualquer coisa para uma outra. Não está falando, sua inflexão é de canto. Um sevilhano decide que já é hora da siesta. Bate palmas e sapateia: "y dentro de poco me voy a la caaamaaaa". Entro em um bar. Passado o primeiro copeo, já está alguém cantando e contando uma trágica história na qual foi castrado. "Y en la ausencia de cojooooneees, te entrego mi corazóóóón". E já vi, juro que vi, uma mulher quase dançando ao caminhar pelas calles de Sevilha, fazendo toda a rua parar, enfeitiçada.

Ouvi em algum lugar que a espanhola "solo tiene boca para el canto y para hostias". Tenho minhas dúvidas e não quero morrer com elas.





(Folha da Manhã, 12/01/77)