¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, abril 27, 2007
 
MAIS RESPEITO COM O SANGUE DE CRISTO



O cristianismo tem seus bons legados e um deles é o vinho. Onipresente na Bíblia, em uma leitura rápida encontrei 195 referências a este fruto do sol e da terra. Em muitos casos, é descrito como causador de sofrimento e proibido por Jeová. Mas os homens são incorrigíveis. No Eclesiastes, lemos: "Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe o teu vinho com coração contente; pois há muito que Deus se agrada das tuas obras". No Cântico dos Cânticos, Sulamita pede a Salomão: "Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho". Amor pode ser melhor. Mas o elemento comparativo é o vinho.

Já no Gênesis, o vinho é pretexto para Ló, sobrinho de Abraão e único homem justo de Sodoma, dormir com Moabe e Ben-Ami, de quem viriam os moabitas e os amonitas. Como o bom Jeová nada objetou a este conúbio, podemos inferir que não comete pecado todo pai que, embebido de vinho, leva suas filhas para a cama. Mas é no Novo Testamento que o vinho se torna um elemento fundamental do cristianismo, quando Cristo institui a Eucaristia. O vinho, uma vez consagrado pelo sacerdote, torna-se literalmente seu sangue.

Não há cristianismo sem vinho. Já os brutos que cultuam o Corão o proíbem. Nada de espantar. Os desertos árabes não são propícios a vinhedos e o vinho jamais poderia ter um papel econômico nas regiões onde o islamismo nasceu. Se não dá lucro, pode ser perfeitamente dispensado.

Cultor deste bom legado cristão, não consigo curtir o vinho sem um certo ritual. Claro que o que mais importa é o sabor. Mas as virtudes organolépticas são apenas seu pressuposto básico. Outros elementos hão de envolvê-lo, ou então beber vinho não tem graça. Para começar, a cor. As garrafas devem mostrá-la e os copos, em princípio, terão de ser claros e transparentes. Nos tempos bíblicos os vinhos eram armazenados em odres. Jeroboão, o primeiro rei de Israel, afogou-se em um deles, bebendo hidromel. Mas o mundo mudou de lá para cá e as garrafas não oferecem tais riscos. Naqueles tempos - como costumam dizer os autores dos Evangelhos - não havia vidro.

Mudou para pior ou para melhor? Se em épocas passadas havia um culto ao requinte, as presentes estão se revelando vulgares. No que tange ao vinho, levei um choque ao ver as tais de garrafas azuis, que algum produtor vagabundo tentou introduzir no mercado. Creio que as vi, pela primeira vez, em um supermercado em Paris. Mais tarde chegaram ao Brasil. Você não tem uma idéia precisa do que seja um bruto? Observe o fácies lombrosiano de quem compra vinho em garrafas azuis.

Mais recentemente, alguns vinhos trocaram as rolhas de cortiça por rolhas de plástico e silicone. Ora, a cortiça tem suas razões de ser. Teria sido introduzida por um emérito conhecedor de vinhos, o monge beneditino Dom Pierre Pérignon - segundo a lenda, o descobridor do champagne - e aqui vai mais uma contribuição do cristianismo à arte do bem beber. A humanidade fez várias experiências para fechar garrafas, desde tampas de cristal até tampas de madeira. Nenhuma se revelou tão eficaz quanto a cortiça. Cheirando a rolha de cortiça, você não vai definir uma cepa, mas pelo menos pode saber se o vinho está deteriorado ou não. Assim, quando um garçom me oferece uma rolha de plástico, fico completamente sem graça e com vontade de trocar de restaurante.

Vinho exige ritual, dizia. Você não vai tomar um bom vinho em um boteco de mesas de plástico e televisão ao fundo. O bom vinho, diria, exige boa companhia, talvez uma boa música ao fundo. De preferência, em surdina. Taças adequadas e toalhas lindas. É pecado que clama aos céus beber vinho ouvindo futebol. Por favor, mais respeito ao sangue de Cristo. É claro que um restaurante com um décor solene e ambiente silencioso confere a qualquer vinho um alto valor agregado.

Não imagine o leitor que tenho dons de sommelier. Nada disso. Minha memória olfativa e palatal é curta. Posso tomar hoje um excelente vinho, daqui a dois ou três meses não saberia reconhecê-lo. Aliás, assim como não creio em Deus, tampouco creio em sommeliers. Não há memória humana que guarde os milhares de bouquets que eles pretendem guardar. Sommelier é um pouco como astrólogo, um vigarista.

Não tenho maior apreço por vinhos brasileiros. Talvez um pouco em função desta psicologia patrioteira de certos compatriotas, que acham que todo brasileiro deve consumir produtos nacionais. Em verdade, nem tenho autoridade para falar dos nacionais, pois há mais de trinta anos não os degusto. Não se mexe em time que está ganhando. Aqui no continente, sou muito gratificado pelos vinhos da Cordilheira, particularmente os Malbec e Carmenère, e não vejo porque fazer aventuras.

Especialmente quando leio que as adegas brasileiras estão lançando vinhos de uvas finas em bag-in-box. Que a meu ver devem ser as tetrapak suecas, um grande achado quando se trata de leite ou sucos. Em suma, caixas de papelão. Pior ainda, com torneirinhas. Pobres uvas finas. A gaúcha Valduga teria sido pioneira nesta embalagem rastaqüera. Agora, a Miolo a acompanha nesta barbárie. Se desde que me conheci por gente não vi motivos para tomar vinhos tupiniquins, agora mesmo é que deles só quero distância.

Vinhos de uvas finas em caixas de papelão com torneirinhas! Só o que faltava. Se algum dia, em algum restaurante, um garçom me oferecer esse insulto, levanto incontinenti da mesa e ainda entro com ação contra a casa, pedindo indenização por danos morais.