¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, maio 21, 2007
 
AINDA UM HONESTO MANUAL DE VIGARICE



Humberto Quaglio escreve:

Prezado Janer,

Excelente seu texto "Um Honesto Manual de Vigarice". Só gostaria de comentar algo que pensei ao ler dois trechos de seu texto: "...não se pode considerar minimamente culto quem um dia não tenha lido Swift, Nietzsche, Stendhal e pelo menos um ou dois romances de Dostoievski", e "Se falo em Dulcinéia, Blefuscu, Laputa, Raskolnikoff, Julien Sorel, Ema Bovary, Martín Fierro e meu interlocutor não tem a mínima idéia do que sejam ou de quem seja, é porque meu interlocutor não é pessoa que lê".

Há alguns anos, quando o Mário Henrique Simonsen morreu, eu estava ainda nos primeiros períodos da faculdade, e li em algum jornal que o ex-ministro uma vez disse que só se poderia considerar uma pessoa culta se ela tivesse lido o Fédon, de Platão. Como eu desejava, aos vinte anos, ser considerado uma pessoa culta, ainda mais pelos padrões de alguém que possuia reputação de homem muito culto, li imediatamente o Fédon. Lembro-me até que eu e um amigo, jovens muito moleques na época, passamos um dia interpelando as pessoas no campus da UFJF e perguntado "você sabe quem disse que devia um galo a Asclépio?", para vermos quantas pessoas cultas conseguiríamos encontrar na universidade. Só um professor de filosofia, portador do título de doutor por uma universidade alemã, conseguiu responder corretamente.

Posteriormente, lendo, ou conversando com pessoas consideradas cultas, ouvi e li muitas frases semelhantes: "Só se pode considerar culto quem leu...", e aí as obras ou autores variam muito. Alguns são citados mais freqüentemente, como Platão, Dante ou Shakespeare, mas eu tenho percebido que, se eu fizer uma lista de todas estas obras cuja leitura é considerada por uns ou por outros indispensável para considerar alguém culto, será uma lista tão extensa que talvez seja impossível ler tudo no período de uma vida humana. O que acaba acontecendo é que sempre alguém será reputado como culto por uns e como inculto por outros, o que me leva a concluir que dizer que alguém é culto é um julgamento subjetivo.

No entanto, é falsa a afirmação de que quem não conhece este ou aquele personagem célebre da literatura é pessoa que não lê. Dizer de alguém que "esta é pessoa que não lê" é um julgamento objetivo. Há pessoas que lêem muito, (e não estou falando de subliteratura, mas de leituras de qualidade) porém não são grandes apreciadores de literatura, de ficção. Conheço muita gente que lê tratados históricos, filosóficos ou científicos por prazer, e com muita freqüência, mas que não saberiam dizer quem é Raskolnikoff (ou Raskóllhnikov, na grafia dada na edição que eu tenho do Crime e Castigo). Algumas dessas pessoas que não conhecem Raskolnikoff, mas que lêem tratados científicos, poderiam perguntar a um apreciador de literatura em que célebre diálogo foram interlocutores Salviati, Sagredo e Simplício, e receber como resposta um "não sei", e penso que ambos poderiam dizer um do outro "esta não é uma pessoa culta", mas não poderiam dizer um do outro que "esta não é uma pessoa que lê".

Isto me faz lembrar da rivalidade existente entre pessoas ligadas às chamadas "humanidades" ou "ciências humanas e sociais", e as pessoas ligadas às "ciências naturais". Se eu não me engano, se a memória não me trai, no livro Imposturas Intelectuais, o Alan Sokal (que, aliás, desmascara picaretas como Lacan) menciona esta rivalidade, contando de literatos que consideravam os físicos incultos, por não conhecerem este ou aquele autor ou obra. Um grupo de físicos até aceitou a alcunha de pessoas incultas, mas resolveu fazer uma pesquisa entre professores de literatura, para verificar se eles saberiam o conceito de massa. A maioria não sabia, e eles concluíram que estavam diante de analfabetos, pois se, para um apreciador de literatura, o desconhecimento de algumas obras significa falta de cultura, para um físico, o desconhecimento do conceito de massa significa analfabetismo.

Adorei o seguinte trecho de seu texto: "Uma boa biblioteca é feita de centenas, senão de milhares, de livros não lidos ou lidos pela metade. Best-sellers à parte, a produção de bons livros é enorme. Há os livros que compramos por engano. Outros, por gula. Nos últimos anos, sempre estou lendo os livros que comprei na penúltima viagem. Os da última, conforme o nível de interesse, ainda estão à espera. Podem até ser deixados de lado em função de um título mais urgente que por acaso surja".

Sempre pensei assim. Minha biblioteca está cheia de excelentes livros que ainda não li, mas, como eu costumo dizer, estão na fila.

Quanto a mim, ainda não sou minimamente culto de acordo com seu critério. Não li Swift nem Stendhal (li há alguns anos uns poucos capítulos d' O Vermelho e o Negro, mas outros livros me interessaram mais naquela época, e aí o Stendhal voltou para a fila). Do Nietzsche eu já li alguma coisa. Na época em que eu abandonei o cristianismo, li o Anticristo. Depois, li a Genealogia da Moral. Do Dostoievski eu li três: Crime e Castigo, A Casa dos Mortos e Noites Brancas. Dulcinéia e Sorel eu tenho uma idéia de quem sejam, pois comecei a ler o Quixote quando era adolescente (também voltou para a fila) e sobre o Vermelho e o Negro eu já falei. Ema Bovary é para mim apenas um nome que não me soa estranho. Blefuscu e Laputa eu desconheço completamente. O Martín Fierro não li ainda, está na fila, mas me é bastante familiar. Meu avô, que era de Santana do Livramento, recitava alguns versos do Hernández, e meu tio mais velho também gosta muito da obra dele. Não sei se você se lembra que uma vez eu enviei um e-mail em que mencionei que eu sou bisneto do João Manuel de Araújo Filho.

Enfim, penso que há muito ainda para se ler, mas não é possível ler tudo o que se quer, ou o que reputa importante, ou mesmo indispensável, no breve período em que nos é dado viver. Assim, procuro conciliar sempre aquelas leituras que considero indispensáveis (e que muitas vezes não são prazerosas de ler), com aquelas que, mesmo não sendo indispensáveis, me dão prazer (mas nunca subliteratura, não me entenda mal), como, por exemplo, os textos e e-books do escritor Janer Cristaldo, que, aliás, escreve muito bem.

Um grande abraço.




Tens razão, Humberto. A lista é grande e subjetiva. Eu citei bem poucos autores para o que se entenderia como homem culto. Claro que estou falando dessa cultura que se convencionou chamar de humanidades. Um físico, um químico, um geólogo, estas pessoas até podem ter muita cultura sem ter passado pelos clássicos. Mas, se estamos falando das tais de humanidades, há autores obrigatórios.

Platão é um deles. Não precisa ler tudo. Mas lá estão as bases do pensamento ocidental. Como diz aquela propaganda da Folha, "não dá pra não ler". Dostoievski e o Quixote, também. Pode-se até deixar de lado o Stendhal ou o Flaubert, mas é bom que se tenha uma idéia de quem sejam. Já o Galileu, bom... estamos numa área mais científica, e aí a listagem não terminaria mais. E sempre é bom saber quem devia um galo a Asclépio. É bom também saber quem era Asclépio. Há quem pense que o Sócrates estaria devendo um galo a algum vizinho. É apenas um detalhe da obra, mas fundamental. Conheço pessoas que acreditam que Sócrates acredita em Deus. Com isto pretendem que Sócrates já aceitava o monoteísmo.

O problema é a memória. Eu li Platão e Cervantes muito jovem, hoje quando os releio me parece estar visitando territórios desconhecidos. Depois, há as releituras. À medida em que crescemos intelectualmente, a percepção de uma obra vai mudando. Uma viagem, por exemplo, pode fazer com que você faça uma leitura totalmente nova de um livro. Uma coisa é ler o Quixote antes de conhecer as paragens por onde andou. Após conhecê-las, a leitura é outra. Quando andei pela geografia árida de Castilla, ao ver um moinho naqueles campos agrestes, te juro que vi os dois, o Quixote e o Sancho, cavalgando rumo ao nada. Quem vai à Espanha e não os vê, não viu a Espanha.

As leituras adultas são sempre as melhores. A propósito, Blefuscu e Laputa são ilhas das Viagens de Gulliver. Este livro é fundamental. Se não leste, compra logo. Vai te fascinar. O que ocorreu com Swift é que, dada a forma alegórica como desenvolve seu livro, foi considerado literatura infantil. Ora, Swift é certamente o autor que mais escarneceu da humanidade. As Viagens é livro ao qual sempre volto e sempre encontro um redobrado prazer ao relê-lo.

Quanto ao Hernández - opinião suspeita de quem nasceu lá na Fronteira Oeste - se eu tivesse direito a levar um só para uma ilha, acho que seria o Martín Fierro. Quando me isolei na Suécia, levei comigo dois livros. O Fierro, e a Poesia Completa do Fernando Pessoa. Foram os dois autores que me mantiveram em pé naqueles dias de neve e solidão.

Pois é, Humberto, a lista é vasta e subjetiva. Em minha adolescência, li um livro de Will Durant, onde ele listava um mínimo de autores que um homem culto deveria conhecer. Começava com Platão e Aristóteles, passava por Agostinho e Tomás de Aquino, incluía Descartes, Rousseau, Montesquieu e por aí vai. Fui atrás desses autores todos. Eu vivia então em Dom Pedrito, onde havia apenas uma pequena livraria, que só tinha livros didáticos. Ainda pivete (teria uns quinze anos) viajei a Santa Maria, cidade universitária, onde havia uma sucursal da livraria Globo. Pedi para o balconista ir baixando os livros de minha listinha. Tive sorte. A editora Globo, nos anos 50 e 60, montou uma excelente coleção, a "Biblioteca dos Séculos", que continha boa parte dos livros fundamentais para um homem se pretenda culto.

O que eu não sabia é que a Suma Teológica tinha dez volumes. Ainda bem que naquela época ainda não fora traduzida. Hoje tenho os dez volumes da Suma, em português e latim, quando quero rir um pouco volto à leitura do Boi Mudo. Não li todos os livros sugeridos por Durant, mas li muitos deles. Se hoje considero que nem todos eram fundamentais, foi bom lê-los para saber que não eram.

Em suma, não dá pra ler tudo. Mas sempre é bom ter livros que ainda falta ler. É algo que ajuda viver.

Abração.