¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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quinta-feira, maio 17, 2007
UM HONESTO MANUAL DE VIGARICE Em Paris, está nas livrarias um excelente manual de vigarice intitulado Comment parler des livres qu’on n’a pas lus?. Ou seja, Como falar de livros que não lemos? O autor é Pierre Bayard, psicanalista e professor da universidade Paris VIII, o que já nos diz muito sobre o livro. Como todo psicanalista, é intelectualmente desonesto. Como professor de Paris VIII, é ipso facto suspeito. Paris VIII é aquela universidade parisiense criada em 1968, que normalmente não ousa dizer seu nome. A ex-ministra francesa da Educação Edith Cresson a considerava "la poubelle du Thiers Monde", isto é, a lata de lixo do Terceiro Mundo. Quando você ler no currículo de algum intelectual brasileiro que ele se formou na Université de Paris, abra o olho. Não existe Université de Paris, assim sem mais. As universidades parisienses, após a sedizente revolução de 68, são designadas por números. Paris I, Paris II, Paris III, e assim por diante, até Paris XIII. Quem não designa com precisão a universidade em que se doutorou, é tiro e queda: é porque se doutorou em Paris VIII, a poubelle. Assim, não é de espantar que tal manual de vigarice tenha sido escrito por um egresso da lata de lixo. Segundo resenha da Veja, "o livro que foi largado na metade, ou logo nas primeiras páginas, ou lido aos pedaços, ou apenas folheado - todos eles fazem parte do histórico do leitor". Até pode ser. Muitas vezes compramos um livro só porque um capítulo nos interessou. Isso ocorre muito com ensaios. Um dos livros que não li todo foi Le Livre noir du communisme, de Stéphane Courtois et alii. Li os capítulos sobre China, União Soviética e América Latina. E cansei. Os massacres são tão monótonos que deixei de lado Coréia, Vietnam, Camboja. Seja como for, é um livro de referência. A qualquer momento que necessitar de dados sobre estes países, a obra está ao alcance de minha mão. Outro que não consegui chegar até o fim foi La História criminal del cristianismo, de Karlheinz Deschner. Tenho oito volumes da obra e me consta que ainda faltam alguns. Os massacres patrocinados pela Santa Madre Igreja Católica são tantos que acabam entediando. Mas o livro está aqui, a uns dois metros de minha mesa, para quando for necessário discutir com aquele tipo de católico que gosta de justificar a Inquisição e as cruzadas. Uma boa biblioteca é feita de centenas, senão de milhares, de livros não lidos ou lidos pela metade. Best-sellers à parte, a produção de bons livros é enorme. Há os livros que compramos por engano. Outros, por gula. Nos últimos anos, sempre estou lendo os livros que comprei na penúltima viagem. Os da última, conforme o nível de interesse, ainda estão à espera. Podem até ser deixados de lado em função de um título mais urgente que por acaso surja. Seja como for, não é intelectualmente honesto deixar pela metade livros como o Quixote, Crime e Castigo, 1984, As Viagens de Gulliver. E centenas de outros. Sei, não é fácil ler Cervantes ou Dostoievski nos dias que correm. Mas quem decidiu enfrentá-los, tem de ir até o fim. Leitura é trabalho. Bayard sugere que o leitor não deve ter vergonha das lacunas de sua formação cultural. Ora, lacunas todos temos e não poderia ser diferente. A literatura é vasta e a vida é breve. Mas há lacunas e lacunas. Certa vez, mostrei a uma jovem executiva de São Paulo a estátua do Quixote e Sancho Pança, na Plaza España, em Madri. Ela não tinha a mínima idéia de quem se tratava. Obviamente, sabia quem era Machado de Assis. Como conheço a moça de perto, sei-a inteligente e dotada de curiosidade intelectual. A falha é de nosso ensino. Por outro lado, não se pode considerar minimamente culto quem um dia não tenha lido Swift, Nietzsche, Stendhal e pelo menos um ou dois romances de Dostoievski. E é claro que quem leu isto leu muito mais. "Nas rodas em que se discute literatura - diz o autor - não há porque imaginar que o sujeito a seu lado conheça mais de uma obra do que você". Errado. O homem que lê se impõe por seu conhecimento, pela aisance com que trafega por entre os autores. O leitor vigarista de Bayard até pode se impor, mas só impõe entre seus pares, os demais vigaristas. Se falo em Dulcinéia, Blefuscu, Laputa, Raskolnikoff, Julien Sorel, Ema Bovary, Martín Fierro e meu interlocutor não tem a mínima idéia do que sejam ou de quem seja, é porque meu interlocutor não é pessoa que lê. Só pode enganar analfabetos. O mestre-vigarista de Paris VIII considera que opiniões sobre literatura são sempre um tanto arbitrárias. "Fale bem ou mal de um livro, mas fale com convicção - e ninguém desconfiará que você não o leu". Não é verdade. É fácil desmascarar este tipo de leitor. Por exemplo, estes bravos cronistas católicos que afirmam que Dostoievski teria escrito que se Deus não existe tudo é permitido. É só perguntar a passagem precisa em que leram isto. Jamais conseguirão responder. Porque esta frase, assim formulada, não existe em Dostoievski. Sem ir mais longe, certo dia conheci uma promoter que se pretendia conhecedora da obra de Ernesto Sábato. Morava em uma casa que me lembrou a mansão onde vivia Alejandra. Comentei isto. A moça nem sabia quem era Alejandra. Para mim, morreu ali mesmo. Era mais uma dessas vigaristas que Bayard louva. "Todo leitor é traído pela memória", diz Bayard, e nisto tem toda a razão. Não há memória humana que guarde tudo o que se leu. A menos que se trate de Funes, el memorioso, e se meu leitor conhece literatura sabe de quem estou falando. Mas Bayard extrapola: "Assim, você pode inventar novos episódios para um livro, ou até falar de autores e livros que não existem". Verdade que Jorge Luís Borges fazia isto. Mas o fazia com arte e requinte, como uma ficção em que os personagens - fictícios - eram livros. Não tente inventar novos episódios para um livro. Quem conhece literatura logo o desmentirá. Bayard sugere falar do significado pessoal que um livro tem para você, mesmo que não o tenha lido. Não funciona. Se alguém um dia lhe falar de como foi influenciado por Cervantes, pergunte logo o que Quixote viu na cueva de Montesinos. Ou quem era o governador da Isla de Barataria. Ou de que aldeia vinha Dulcinéia. Se não responder, é vigarista. O autor pretende que qualquer um pode ter uma opinião legítima sobre um livro mesmo sem tê-lo lido. Tem e não tem razão. Você pode ter uma opinião legítima sobre Paulo Coelho ou Harry Potter, mesmo sem tê-los lido. Não é preciso ler esses livros que constam das listas dos mais vendidos para saber que se tratam de subliteratura. Por isto estão na lista dos best-sellers, tão ao gosto dos brutos. Mas esta estratégia não é válida para a grande literatura. A obra de Bayard não deixa de ser honesta. O autor deixa claro que quer formar um leitor mentiroso. Neste sentido, não está enganando ninguém. Mas seu manual só vem em socorro de embusteiros. |
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