¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, junho 12, 2007
 
POR QUE NÃO MAIS LEIO FICÇÕES



"A mesquinhez, a estreiteza imaginativa são os vícios definidores da nossa época.
Somos incapazes de escrever, ou de querer escrever, ou de saber ler sem escrever, epopéias. Em compensação, escrevemos romances. O romance é o conto de fadas de quem não tem imaginação" - escreveu Pessoa -. "A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta. Talhar a obra literária sobre as próprias formas do que não basta é ser impotente para substituir a vida".

Há quanto tempo não leio ficções? Não saberia dizer. Certamente há uns vinte anos. A última ficção que li foi provavelmente a última que traduzi. No caso, A Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, em 1986. Se assim foi, encerrei meu ciclo de ficções com uma novela soberba. Ou seja, faz 21 anos que não ponho os olhos nesses contos de fadas para adultos, como dizia Nabokov. No entanto, deles já fui leitor fervoroso. Lembro de um dia distante, em Buenos Aires. Um amigo me havia encomendado O Túnel, de Ernesto Sábato. Comprei o livrinho e mergulhei em suas páginas, enquanto degustava um trago largo na Suipacha. A neurose de Juan Pablo Castel me fascinou de tal modo que li o livro de um sorvo só. Quem havia escrito aquele livro não poderia ter escrito coisa que não prestasse. De um impulso, comprei toda a obra de Ernesto Sábato, tanto suas ficções como seus ensaios.

Mergulhei então em Sobre Heróis e Tumbas. Na nota preliminar do romance, o autor nos põe em contato com uma tragédia que teria abalado Buenos Aires: "Segundo as primeiras informações, o antigo Mirador que servia de dormitório a Alejandra foi chaveado por dentro pela própria Alejandra. Logo após matou seu pai com quatro tiros de um revólver 32. Por fim, espalhou gasolina e prendeu fogo". Estas parcas linhas me prenderam de tal modo, que desisti de ver a cidade e passei todo o tempo lendo. Só fui largar o livro, de mais de 500 páginas, quando cheguei à última. Mergulhei nos subterrâneos da cidade guiado pelo intrigante Fernando Vidal Olmos. A narrativa toda apontava para um enigmático "Informe sobre Cegos", a terceira parte do livro, e eu avançava com pressa as páginas para chegar lá. O Informe é um relato paranóico de um louco obcecado pelos cegos, e nele me pareceu ver uma Buenos Aires misteriosa e oculta ao turista. Fascinado pela loucura de Olmos, pensei ter então entendido a cidade.

Suprema bobagem. Os delírios de Olmos nada tinham a ver com a Buenos Aires dos homens de carne e osso. Eu fora contaminado pela magia da pena de Sábato e pensava ter visto o que nunca existiu. Em todo caso, este encontro foi profícuo. Acabei entrando em contato com o autor e traduzi praticamente toda sua obra no Brasil. Em função daquelas leituras, acabei morando quatro anos em Paris e defendi tese sobre a obra de Sábato. Em minha tese, defendi com entusiasmo a ficção, a busca de um outro caminho, quando o escritor põe no mundo personagens que parecem ser de carne e osso, "mas que pertencem ao universo dos fantasmas. Entes que realizam por nós, e de certa forma em nós, destinos que a própria vida nos vedou", como diz Sábato. O romance é então uma forma de fugir à imanência, "forma quase tão precária como o sonho, mas pelo menos mais voluntariosa". Para o escritor de Santos Lugares, nisto reside uma das raízes metafísicas da ficção. A outra seria "essa ânsia de eternidade que tem a criatura humana, outra ânsia incompatível com sua finitude. A busca do tempo perdido, o resgate de alguma infância ou alguma paixão, a petrificação de um êxtase".

Pode ser. Minha tese, eu a defendi em 81. De lá para cá, mudou minha visão destas fugas à imanência. Tendo escrito dois romances, Ponche Verde e Laputa, concluí que o escritor perde muito tempo criando climas e personagens, quando poderia ser mais conciso e direto no que se propõe. Um dicionário francês definiu o gênero como "história fingida, escrita em prosa". Ora, o real tem se mostrado muito mais surpreendente do que a ficção. Algum ficcionista imaginou que um dia o Muro de Berlim seria derrubado? Que o mundo soviético desmoronaria? Não. Então fico com Pessoa. O romance, de fato, é o conto de fadas de quem não tem imaginação.

Substitui minha leitura de romances pela leitura dos jornais. O que não é muito diferente. Nos jornais, acompanho ao mesmo tempo vários enredos. Em priscas eras, acompanhei a guerra do Vietnã, as façanhas de Pol Pot no Camboja, as matanças de Mao Tse Tung na China - em proporções que nenhum escritor jamais ousaria imaginar. Acompanhei a Guerra dos Seis Dias, a "revolução" iraniana, os desastres de Khomeiny em Teerã, a primeira e a segunda guerras do Golfo, a queda do Muro, a balcanização da antiga Iugoslávia, o fim da URSS, as aventuras de Clinton no Salão Oval. Os romances são muitos na leitura diária dos jornais e satisfazem a todos os paladares.

O fascinante é que o desfecho é imprevisível e suas possibilidades são cambiantes. Nem sempre o final é feliz e muitas vezes são obras inacabadas. Pode-se também acompanhar romances locais e neste caso o Brasil tem sido pródigo em ingredientes: poder, sexo, corrupção, assassinatos, escutas telefônicas, juízes comprados, políticos venais e por aí vai. Um universo variegado que nem a pena fértil de um Dostoievski ou Balzac conceberia.

Jornalismo é a história presente, escrita com muitos erros de ortografia e sintaxe, é verdade. Mas fascinante. Além desta história presente, me dedico à leitura da outra, a antiga. Estudei Filosofia. Ao longo de quatro anos, descobri que a Filosofia pouco nos faz entender do mundo. São teorias que, ao tentarem entender o mundo, derrubam-se umas às outras. Neste sentido, tenho de admitir, a ficção leva alguma vantagem. Enquanto os sistemas filosóficos se tornam obsoletos com o transcurso do tempo, a ficção - pelo menos a grande ficção - preserva seu frescor ao longo das décadas e séculos. Se hoje leio um Aristóteles torcendo o nariz, sempre retornarei com entusiasmo às páginas do Quixote.

Em suma, se deixei de ler ficção, me tornei um entusiasta das leituras de História. Deve fazer uns vinte anos que só tenho lido ensaios históricos. Sou um freguês de livreta de autores como Renan, Toynbee, Mircea Eliade, Délumeau, Le Goff, entre outros. Tenho especial apreço pelos medievalistas franceses e os invejo. A aisance com que ordenam os quebra-cabeças propostos por milhares de textos antigos é espantosa e não está ao alcance de qualquer mortal.

Trocando os queixos de bolso: tudo isto para dizer que hoje fui até o centro da cidade, este centro feio e abominável que tanto evito. Ocorre que lá há um restaurante singelo, simpático, barato e de cardápio generoso. É o Da Giovanni, na Basílio da Gama. Os garçons sempre me recebem com carinho. Tirante a arquitetura interior, me lembra o popular Le Chartier, de Paris. Minha única queixa é que o restaurante não é mais perto de onde habito. E a duas ou três quadras do Da Giovanni, está minha perdição, a Livraria Francesa, uma das instituições que honram São Paulo. É livraria onde entro com certo medo, pois sei que dela não sairei impune. Da penúltima vez que lá estive, levei L’Empire Gréco-romain, de Paul Veyne, um soberbo ensaio de 876 páginas sobre nossas origens culturais. Recomendo vivamente. De Paris, do mesmo autor, minha filha acaba de me trazer Quand notre monde est devenu chrétien, um estudo menos alentado da época de Constantino.

Hoje, marchei com uma antologia de cerca de 1400 páginas, Un Autre Moyen Âge, onde Jacques le Goff reúne pelo menos sete de seus ensaios. Mergulhei em La Naissance de Purgatoire e tão cedo não vou largá-lo. Qual ficcionista seria capaz de criar essas geografias e legislações do Além? Nenhum. Isto é tarefa para teólogos.

As ficções, particularmente as contemporâneas, andam muito chatas. Sugiro História. Voltarei ao assunto.