¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, agosto 26, 2007
 
BRASIL CRIA NOVA PROFISSÃO,
O AMIGO DE ALUGUEL



Entre as coisas boas da vida, estão os amigos. O problema é que a palavra se vulgarizou. Uma das coisas que detestei em meus dias de Florianópolis era ser chamado de amigo a todo momento, por gentes que nem conhecia. É um hábito ilhéu, chamar de amigo todo e qualquer interlocutor. A meu ver, desvaloriza a palavra. E também o conceito. Amigo é palavra que reservo para poucas pessoas. Se for contá-las nos dedos, acho que vão sobrar alguns.

Em certo momento de minha vida, concluí que são necessários pelo menos uns dez anos de convívio para considerarmos alguém um amigo. Mas a vida continua. Continuando, me levou a outras conclusões. Talvez sejam necessários quarenta anos. Hoje, pelas experiências que tive, considero que nem quarenta anos são suficientes. Já tive um amigo de infância, com quem nadei no mesmo rio em meus dias de adolescente. Vivemos vidas diferentes. Ele era marxista, fez guerrilha urbana, foi preso e torturado, sofreu quatro anos de prisão militar. Apesar de estarmos em fortificações opostas, algo nos unia, os dias passados naquele rio e naquela cidadezinha lá da Fronteira. Isto me fascinava. Apesar de termos visões totalmente distintas da vida e do mundo, continuávamos cultivando essa coisa hoje tão rara, a amizade.

Era um sentimento muito gaúcho - e quando digo gaúcho não falo de rio-grandenses. Falo daqueles gaúchos dos tempos de Martín Fierro. Trocamos de países, mudamos de cidades e acabamos nos reencontrando nesta Paulicéia, para rememorar aquelas lutas de adolescentes e nossas universidades. Passaram-se mais de quatro décadas. Foi quando ele doutorou-se pela USP. Uma vez titulado, afastou-se completamente de mim. E é por esta razão que afirmo que, para definir uma amizade, quarenta anos não são suficientes.

Por estas e por outras, fico perplexo ao ler, em reportagem da Folha de São Paulo, que hoje já se pode alugar amigos, por algo entre 50 e 300 reais por hora. Se lesse isto em um livro de ficção científica, eu consideraria que o autor era pessoa de uma imaginação fértil. Não estou lendo ficção alguma, mas uma reportagem. Vamos à dita:

Atenção você, leitor, que sofre com a falta de "amigos, desses que olham nos olhos e falam com sinceridade", não fique assim pra baixo: seu problema pode estar resolvido. O mercado de babás de luxo acaba de acrescentar a seu crescente leque de ofertas o assim chamado "personal friend'. Trata-se de um especialista em amizade profissional, que cobra por hora para ser seu amigo, conversar e acompanhá-lo em voltinhas pelo shopping ou, se for no Rio, pelo calçadão, tomando uma água de coco.

Paulo Sampaio, que assina a reportagem, tranqüiliza: "Os psicólogos não precisam se sentir ameaçados. O novo profissional faz questão de esclarecer que não tem a menor intenção de ser terapeuta. Disponibiliza apenas a amizade".

Que o mundo está cheio de pessoas solitárias, disto sei muito bem. Ainda em Porto Alegre, tive certa vez acesso ao diário de um desses seres. "Eu, meu rádio e Deus", escreveu ele, referindo-se a seus únicos interlocutores. Guri novo, eu jamais havia visto tamanha solidão. Em Estocolmo, vi pessoas que morriam e só tinham seus cadáveres descobertos quando terminava o inverno e começavam a putrefazer-se. Não tinham um único ser que sentisse suas faltas. Por onde quer que se olhe, há pessoas envoltas em espessas carapaças de solidão - e não conseguem perfurá-las.

Daí a pagar pelo convívio de alguém, pagar caro e pagar por hora, me soa como uma das misérias mais deploráveis deste nosso mundinho contemporâneo. Verdade que há gentes fazendo isto há muito tempo. São aquelas senhoras que buscam o médico por qualquer espirro. Elas não se sentem doentes, querem apenas falar com alguém. É o que leva muitos clientes aos psicanalistas. Não que necessitem de tratamento psicológico, querem apenas ser ouvidos. Já que o psicanalista é pago para ouvir, então que ouça tudo, inclusive nossas misérias inconfessáveis. Penso que este, e não a terapia, é um dos fatores que leva multidões até estes gigolôs das angústias humanas. E, pelo que conheço dos bois com que lavro, há bois que não dá para ouvir por preço baixo.

Amizade tem gradações. Para mim, há aqueles que não chegam a ocupar todos meus dedos. Estes são os que procuro cultivar. Depois há a grande fatia dos conhecidos. Isto é, aquelas pessoas com as quais conversamos e convivemos no dia-a-dia e não são necessariamente amigos. Mas ajudam a tornar a vida mais suportável. Hoje, a Internet trouxe uma espécie nova, a dos amigos - ou conhecidos - cuja face geralmente desconhecemos, mas com os quais convivemos amigavelmente.

Conversando certa vez com um desses seres solitários que não conseguem relacionar-se com ninguém, ouvi sua queixa. Ele não conseguia comunicar-se com pessoa alguma em seu prédio. Grande novidade! Eu moro num prédio com 90 unidades residenciais e, fora o bom dia boa tarde, não tenho maiores relações com ninguém. Mas estou conversando quase todos os dias com pessoas em Estocolmo, Helsinki, Paris, Madri, Los Angeles, Brasília, Rio, Porto Alegre, Santa Maria e até mesmo Dom Pedrito. Essas pessoas, eu as conheço bastante bem. A Internet filtra afinidades. Quanto a meu vizinho de porta, não tenho a mínima idéia do que ele pensa do mundo. A menos que ele seja um desses interlocutores com os quais me correspondo e não tenho a mínima idéia onde vivem. Até pode acontecer.

Volto aos amigos de aluguel. Trata-se de uma nova profissão, diz a reportagem. "Os entrevistados começaram no ramo há menos de um ano e, segundo dizem, estão com a agenda tomada. Ah, importante: o serviço acaba na amizade, descartando-se, portanto, qualquer proposta de cunho sexual. Que tal? Sorriu? Então aí vão os detalhes: o amigo pessoal por dinheiro cobra uma taxa que pode variar de R$ 50 a R$ 300; em geral prefere trabalhar em lugares públicos e não tem restrições quanto à faixa etária".

Ora, ora, até aí morreu o Neves. Se a questão é pagar, desde há muito existem os serviços de scorts. Por uma quantia não muito módica, você pode ter uma bela mulher - muitas vezes uma universitária - que o acompanha em teatros ou restaurantes e inclusive para a cama, se você quiser. Se você for mulher, o mercado lhe oferece homens. Com sorte, essa companhia pode ser muito agradável. Ou seja, os personal friends não estão descobrindo a América. Em verdade, trata-se de uma banalização da psicanálise. Em Porto Alegre, surgiu uma variante desta categoria de vigaristas, os filósofos clínicos. Mediante paga, se dispõem inclusive a ouvir suas bobagens na mesa de um bar.

Estamos vivendo uma época de banalização de conceitos. Hoje, carisma é qualidade até mesmo de analfabetos. Qualquer vigarista letrado se intitula filósofo. Amor virou sinônimo de compras no shopping. E amizade, hoje - pelo menos segundo a imprensa - pode ser comprada. Por hora. A profissão é promissora. Por enquanto, não exige diploma. Como a psicanálise, qualquer vigarista pode exercê-la.

O perigo, neste Brasil que adora criar profissões, é a regulamentação do ofício. Mais dia menos dia, os amigos profissionais criam um sindicato e proíbem o exercício da profissão aos não-sindicalizados. Mais um pouco e teremos cursos superiores de formação em Amizade. Quem não cursá-los não poderá mais ser amigo de ninguém.