¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, agosto 22, 2007
 
A DOENÇA DA CURIOSIDADE




Os crentes andam nervosinhos, e com razão. Vários livros difundindo o ateísmo estão surgindo nas livrarias e, ao que tudo indica, a fé dos teístas não é das mais firmes. Um leitor me envia um comentário feito ao livro de Richard Dawkins, Deus, um delírio, publicado no site da livraria Saraiva:

"Infelizmente existem pessoas dedicadas a cooperar com o próprio demônio. Vejo esse livro como uma investida para CONFUNDIR nossas idéias e distorcer a verdade, a grande verdade de que Deus existe realmente e está aqui, Ele cura enfermos, nos sustenta, nos dá força... negar a existência de Deus é como negar a existência da própria alma, é pensar ser somente um monte de tecidos de macacos sem sentimentos e sem espírito. Negar a existência de Deus é blasfêmia e um ataque à própria inteligência". (Alison)

Ora, se o Alison está firme em sua fé, não precisa temer a confusão de suas idéias. Se Deus realmente existe, as portas do inferno não prevalecerão contra sua Igreja, como dizia o Cristo. Mas parece que as coisas não são bem assim. As diversas facções cristãs se aceitam entre si e convivem pacificamente sem maiores problemas, apesar de detalhes divergentes como o purgatório ou a virgindade de Maria. O problema é o ateu, esse bárbaro - como diria Ernesto Sábato - que entra a cavalo e de lança em riste em um salão onde damas da corte dançam um minueto.

Estou lendo o livro de Dawkins. O autor faz uma aposta: "Se este livro funcionar como espero, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem". Bom, isto não me diz respeito. Sou ateu desde meus verdes anos. Mas o autor demonstra ingenuidade. Se ele se debruçou sobre o fenômeno religioso, já terá observado que o homem que crê é infenso a qualquer argumentação racional. Por outro lado, Dawkins quer negar a existência de Deus a partir da ciência. É inútil. Fé é outro departamento.

Se o livro não me traz nada de novo no que diz respeito a deus ou deuses, pelo menos me esclarece uma discussão corrente nos Estados Unidos, que sempre me soou estranha, a oposição entre os evolucionistas e creacionistas. Ora, essa discussão me parecia definitivamente encerrada desde aquele antigo filme de 1960, O Vento Será tua Herança, dirigido por David Greene, com Jack Lemmon e George C. Scott. O filme gira em torno de um professor que é processado por ensinar a teoria evolucionista de Darwin aos seus jovens alunos. Eu imaginava que esta questão estava morta e sepultada desde então. Isto é, há praticamente meio século. Santa ingenuidade, a minha. A discussão está viva e ainda dará muito do que falar.

Ocorre que o debate foi polarizado nos Estados Unidos. Os ateus passaram a se apoiar em Darwin para contestar os crentes. À religião, opõem a ciência. O diálogo me parece de surdos, pois estas duas categorias não se tocam. Um católico pode ter todo respeito pela ciência, especialmente quando depender de tecnologia de ponta para vencer um câncer ou uma cardiopatia. Mas jamais deixará de crer no milagre, este insulto insuportável à ciência e à razão. Na hora de agradecer pela sua sobrevivência, deixará de lado todo o trabalho da equipe médica que se encarniçou para salvá-lo e agradecerá a Deus... justo o Deus que permitiu que fosse tomado pela doença.

A propósito, o autor comenta esta mania dos crentes, ao citar o atentado a João Paulo II em 1981. O papa atribuiu sua sobrevivência à Nossa Senhora de Fátima: "Uma mão materna guiou a bala".

Não dá para não se perguntar por que ela não a guiou para que se desviasse de vez dele. Ou se pode questionar se a equipe de cirurgiões que o operou por seis horas não merece pelo menos uma parte do crédito; mas talvez as mãos deles também tenham sido maternalmente guiadas.

Comentando a teoria do design inteligente, o último achado dos creacionistas para proteger a idéia de deus dos assaltos da razão, comenta Dawkins:

Esta é a mensagem que um "teórico" imaginário do design inteligente poderia transmitir aos cientistas: "Se vocês não entendem como uma coisa funciona, não tem problema: simplesmente desistam e digam que Deus a criou. Vocês não sabem como o impulso nervoso funciona? Tudo bem! Não entendem como as lembranças são depositadas no cérebro? Excelente! A fotossíntese é um processo desconcertantemente complexo? Maravilha! Por favor não saiam trabalhando em cima do problema, apenas desistam e apelem a Deus. Caro cientista, não estude seus mistérios. Traga seus mistérios a nós, pois podemos usá-los. Não desperdice a ignorância preciosa pesquisando por aí. Precisamos dessas gloriosas lacunas para o último refúgio de Deus". Santo Agostinho disse de forma bem clara: "Existe outra forma de tentação, ainda mais cheia de perigo. É a doença da curiosidade. É ela que nos leva a tentar descobrir os segredos da natureza, segredos que estão além de nossa compreensão, que nada nos podem dar e que nenhum homem deveria querer descobrir".

Pretenderá Dawkins que este tipo de homem seja sensível à razão? Santa ilusão. De minha parte, só discuti a existência de Deus quando jovem e inexperiente. Desde há muito não a discuto mais. É beco sem saída. Não precisei de argumentação científica alguma para chegar à minha descrença. Tornei-me ateu lendo a Bíblia. Aquele deus truculento e assassino só podia ser criação humana. Não bastasse a Bíblia, comecei a ler História das Religiões. Não há crença que resista a estas leituras.

Parafraseando Pessoa: os deuses são tantos, que não podem ser tantos. Hoje, gosto de discutir questões bíblicas. Considero o Livro como literatura e Jeová como personagem, ao mesmo título que Don Quixote ou Pantagruel. Discuto teologia como discutiria geometria. O triângulo não existe, é um ente de imaginação. Mas se alguém me der a medida dos catetos, forneço a hipotenusa.

De qualquer forma, vale a pena ler o livro de Dawkins. É fruto da doença da curiosidade, como diria Agostinho. Se nada traz de novo em matéria de discussões a respeito de Deus, pelo menos nos mostra um país fanático, onde ser ateu é mais abominável que ser homossexual. Voltarei ao assunto.

PS - O leitor Odilon Toledo esclarece que o filme Inherit the Wind se refere a um julgamento ocorrido em 1925. Ou seja, a discussão vem de mais longe.