¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sábado, setembro 29, 2007
 
CARTA DE SÁBATO AO CHE



1º de fevereiro de 1960

Comandante Ernesto Guevara
La Habana - Cuba

Admirado Guevara:

Em sua viagem a Buenos Aires, o jornalista R. Walsh nos explicou minuciosamente e com entusiasmo a façanha que vocês levaram a cabo. Durante mais de cinco horas, em minha casa de Santos Lugares, onde eu havia reunido um grupo de amigos, dissipou uma quantidade de mal-entendidos que confundem a opinião pública deste país.

É precisamente este fato o que me induz a escrever-lhe esta carta para que você, como um dos chefes da revolução cubana e em sua condição de argentino possa ajudar a uma melhor compreensão do problema que mutuamente nos atinge e para que o movimento cubano alcance em nossa pátria a repercussão popular que deveria ter. Esquematicamente, o problema tem os seguintes aspectos que requerem uma análise (Para um exame mais circunstanciado, me permito remeter-lhe El otro Rostro del Peronismo, que publiquei em 1957):

1. A revolução cubana foi saudada como alvoroço pela totalidade da oligarquia argentina, que nela via a continuação ou o equivalente da revolução de 1955 contra o peronismo. O uso abstrato e equívoco de palavras como "liberdade" e "tirania" deu este resultado paradoxal. A mesma causa que levou tantos intelectuais argentinos a situar-se contra o autêntico povo argentino.
2. Como conseqüência inevitável do fato anterior, a imensa maioria do povo trabalhador tomou posição contra vocês. Pode-se ler nos bairros operários da grande Buenos Aires enormes cartazes que dizem: "Viva Perón, morra Fidel Castro".
3. Com o desenvolvimento dos acontecimentos cubanos, sobretudo com a aplicação de medidas sociais e "comunistas", as senhoras de nossa oligarquia e os pró-homens de nossa democracia temem cada vez mais ter-se equivocado e já se pode ouvir muitos deles dizer que Castro continua sendo, por antonomásia, um libertador do mesmo gênero que o almirante Rojas. Vinculado a este fenômeno de definição, é fundamental o que ocorre com um personagem como Jules Dubois, que já cantou em Cuba ou para Cuba a mesma hipócrita cantilena sobre a "liberdade de imprensa".

Como foi possível chegar-se a uma situação tão equívoca e inclusive paradoxal? A análise nos levaria muito longe e não vale a pena ser feita aqui, sobretudo porque, embora sumariamente, já a fiz no folheto que lhe envio por este mesmo correio. Embora mantenha nesse ensaio algumas posições que superei ou retifiquei posteriormente, permanecem válidas em essência as reflexões que faço sobre o sentido de palavras-chave como liberdade, esquerda, democracia e revolução. A história é desgraçadamente impura e amiúde nos valemos de vocábulos que foram superados e até mesmo invertidos pelo processo histórico. Mas a força das palavras é tão grande (quase diria tão mágica) que prevalecem muitas vezes sobre os próprios e evidentes fatos. Quando, na época de nossa famosa Unión Democratica, tantos intelectuais de "esquerda" marchávamos ao lado de conservadores como Santamaria e senhoras da sociedade, deveríamos ter suspeitado de que algo estava funcionando mal.

Quando, nos momentos em que produzia a revolução de 1955, vi modestas empregadinhas chorando em silêncio, pensei (por fim) que as árvores nos haviam impedido de ver o bosque e que os afamados textos em que havíamos lido sobre revoluções quimicamente puras nos haviam impedido de ver com nossos próprios olhos uma revolução suja (como sempre são os movimentos históricos reais) que se desenvolvia tumultuosamente e ante nós mesmos.

Não creia, pois, Guevara, que estou lhe pedindo um exame ou reexame de nosso problema argentino: peço-lhe algo que muitos de nós estamos fazendo aqui com toda humildade. Você, como eu, foi um dos estudantes ou intelectuais de esquerda que rejeitaram a personalidade equívoca e demagógica de Perón. Com a diferença de que você logo se manteve longe de nossa realidade e nós, em troca, vivemos todo o processo, inclusive o revelador processo da "revolução libertadora" (neste país tudo começa com maiúsculas, passa logo a minúsculas e finalmente termina entre aspas). Quando os coronéis de extração nazista se encarregaram do governo em 1945, muitos de nós, antifascistas, repudiamos aquele golpe e, no que a mim diz respeito, devo dizer que fui expulso de minha cátedra e condenado à prisão por desacato. Este fato inicial talvez explique meu distanciamento sistemático de um processo que foi se tornando cada vez mais popular, até converter-se no processo social mais profundo que nossa pátria jamais experimentou.

Posso dizer em meu favor, no entanto, que nunca fui um antiperonista do mesmo gênero que poderia sê-lo. digamos, Victoria Ocampo. Recordo ter discutido com ela (a quem respeito como pessoa e como escritora), em pleno regime peronista, em presença do arqueólogo inglês Lawrence, sobre a essência do peronismo, mantendo naquela áspera discussão as linhas fundamentais que agora lhe explico.

Deve-se a isso o fato de não ter tomado contra o peronismo a posição de nossa oligarquia e da imensa maioria de nossos escritores e intelectuais. Sempre defendi ser mister distinguir entre a personalidade do líder e o movimento que objetivamente ocorreu à sua volta. Os fatos posteriores (relaxamento do regime, corrupção, perseguições iníquas, torturas) que culminaram finalmente com a ignóbil fuga de Perón, que não foi capaz de assumir ante seu povo o posto de chefe autêntico e valoroso, confirmaram uma idéia que era essencialmente correta.

Seja como for, o certo é que muitos como eu estivemos contra o peronismo, isto é, contra o povo trabalhador, apesar de pertencermos, por nosso "esquerdismo", a uma posição teoricamente populista. Agora, esclarecido pelo tempo todo aquele complexo fenômeno, muitos escritores começamos um processo de reajuste que, esquematicamente, consiste no seguinte: o movimento peronista teve aspectos negativos e mesmo nefastos do ponto de vista da dignidade humana (servilismo, corrupção, perseguição, torturas). A personalidade do general Perón continua sendo para nós tortuosa e corruptora. Mas o povo chamado peronista é o povo trabalhador e como ele devemos levar até suas últimas conseqüências o processo que nos dará a definitiva liberação econômica e política, assim como há de lançar as bases para a unidade do continente latino-americano, tal como Bolívar e San Martín o imaginaram e tal como as grandes potências o impediram até hoje.

Em tal perspectiva, é fácil notar a enorme transcendência que teria um reexame do movimento cubano em relação ao movimento popular na Argentina. Quem seria capaz de parar um processo combinado de tal envergadura? Você, Guevara, por sua decisão, por sua valentia, pela clareza de idéias que todos elogiam, pode ser um dos fatores decisivos deste reencontro.

Receba, junto à expressão de minha admiração mais profunda, minha fraternal saudação.

Ernesto Sábato
Santos Lugares, Argentina