¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, setembro 24, 2007
 
DOUTOR PELA UNIVERSIDADE DE
NAVARRA CALUNIA NIETZSCHE




Há determinadas bobagens recorrentes na imprensa e mesmos em livros que, por mais que sejam desmentidas, voltam a ser publicadas. Uma delas é aquela sobre Guernica, o quadro de Picasso. Não há nenhum elemento na pintura que sequer de longe lembre um bombardeio, mas o quadro é tido como uma referência ao bombardeio da cidade basca de Guernica.

Outra bobagem, mil vezes repetidas, é situar Miguel de Unamuno como antifranquista no episódio do dia 12 de outubro de 1936, na Universidade de Salamanca. Ora, naquela data - Día de la Raza - Unamuno representava Franco no paraninfo da Universidade.

Outra que também se repete muito é responsabilizar Nietzsche pelo surgimento do nazismo. No Estadão de hoje, escreve Carlos Alberto di Franco: "A 2ª Guerra Mundial não foi acionada por gatilhos religiosos. O holocausto do povo judeu, fruto direto da insanidade de Hitler, teve alguns de seus pré-requisitos na filosofia da morte de Deus. Nietzsche, o orgulhoso idealizador do super-homem, está na raiz imediata dos campos de concentração e de extermínio programado".

Di Franco se assina como diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra. É espantoso que um senhor com tais títulos profira semelhante sandice. O que talvez a explique é que Di Franco tem outras titulações, que pelo jeito prefere omitir. É membro da Opus Dei, organização católica espanhola que além de pregar a castidade absoluta, recomenda a seus acólitos o uso do cilício. Como bom católico fundamentalista, o doutor por Navarra quer ver no ateísmo de Nietzsche a origem do nazismo. É curioso ver o jornalista católico de braços dados com os comunistas, que sempre viram no pensador alemão o inspirador de Hitler.

Responsabilizar Nietzsche pelo nazismo é desconhecer sua obra. Aqui vão algumas opiniões de Nietzsche sobre os alemães:

"Os alemães são incapazes de conceber a grandeza: seja Schumann o informante".

"Feito como sou, instintivamente estranho a tudo o que é alemão (a ponto de me bastar a aproximação de um deles para retardar-me a digestão)..."

"Por onde quer que passe, a Alemanha destrói a cultura".

"Primeiro, dois séculos de disciplina psicológica e artística, caros senhores alemães... Mas estas coisas não se alcançam facilmente".

"Nunca admitirei que um alemão possa saber o que seja a música!"

"Em Viena, em Copenhague, em Paris, em Nova York, por toda a parte estou descoberto: não o estou somente no país mais ordinário da Europa - a Alemanha".

E por aí vai. Verdade que na edição póstuma de Vontade de Potência pode-se encontrar momentos que possam justificar o nazismo. Mas não se pode responsabilizar um autor por uma obra que foi deturpada por terceiros, no caso a irmã do filósofo, Elisabeth Forster-Nietzsche. Elisabeth - que acabou morrendo no Paraguai em 1935 - quis acomodar o livro inacabado do irmão aos interesses do nazismo. Como dizia Nietzsche, é impossível cercar uma boa doutrina: os porcos criam asas.

Há uns 20 anos, dois professores italianos reestabeleceram o texto original de Vontade de Potência. Parece que o douto membro da Opus Dei nunca ouviu falar disto. Mesmo assim, pouco se pode afirmar sobre uma obra inacabada e não revista.

Não bastasse caluniar Nietzsche, Di Franco quer inocentar o catolicismo de quaisquer massacres: "E não foi a religião que desencadeou o Arquipélago Gulag do stalinismo. Feitas as contas, com isenção e honestidade intelectual, é preciso reconhecer que o sonho racionalista projetou poucas luzes e muitas sombras". Di Franco omite - pois não acredito que desconheça - o fato de que Stalin foi seminarista e que a Rússia dos gulags era um país fundamentalmente católico. Que mais não fosse, mesmo que se admita que não foi a religião que desencadeou o Arquipélago Gulag, foi a religião - e mais precisamente a Igreja em que Di Franco crê - quem desencadeou os massacres, torturas e fogueiras da Inquisição.

Escrevi, em crônica passada, que um jornalista não pode ser católico. Di Franco é a prova definitiva de porque não pode.