¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 31, 2007
 
Crônicas da Guerra Fria (23)


O DRAMA DAS VIÚVAS



Florianópolis - Todo homem que nada espera após a morte - e entre estes me incluo - gostaria de ver, antes do último suspiro, algo surpreendente na História. Viagem à lua não vale, isto os ficcionistas já nos haviam antecipado. Ir a Marte seria um grande feito, mas como o bicho-homem já pôs esta idéia na cabeça, chegar lá é apenas uma questão de verbas e tempo. Uma nave espacial começa a sair do sistema solar? O fato é insólito, jamais o homem conseguiu lançar um objeto tão longe. Mas parece que vai levar alguns milhões de anos antes de aproximar-se da estrela mais próxima. Minha curiosidade revela-se inútil. Fora a face atormentada de Tritão, pouco nos disse a Voyager que pudesse surpreender-nos.

"Deus morreu, Marx agoniza e eu estou com gripe. Quel siècle!", escrevi outro dia, citando um colega francês. A frase surgiu no final dos anos 70, num daqueles lacônicos editoriais assinados, na primeira página do Monde. Se Deus morreu, seu cadáver continua insepulto. Se Marx agoniza, seus devotos o mantêm entubado e vegetando. Do século, só nos resta a gripe. Mas algo de novo parece estar germinando nas nações que um dia pretenderam escorar-se nas teorias do economista alemão. O marxismo - disse alguém algum dia, talvez eu mesmo - antes do final de século não passará de um verbete numa enciclopédia.

Pois destes dias, ao que tudo indica, estamos nos aproximando mais aceleradamente do que se poderia imaginar. As economias socialistas estão se esboroando por onde quer que existam. Bastou a Hungria pôr abaixo o muro que a separava da Áustria e lá estão 40 mil alemães orientais esperando visto para o Ocidente. Na RDA, as empresas já não sabem de quantos funcionários dispõem, pois quem saiu de férias provavelmente não voltará mais. Isso que a Alemanha Oriental é considerada uma das economias mais sólidas do bloco socialista.

"Eles têm mais para comer do que os poloneses, mais dinheiro do que os húngaros, vivem incomparavelmente melhor do que os russos, os ucranianos, os usbeques" - diz Monika Maron, escritora da RDA e refugiada na Alemanha Ocidental, em artigo para a Der Spiegel. "Mesmo assim, eles despencam nas cidades do lado de cá, fugindo em balões construídos do outro lado em fundos de quintal, atravessam a nado o gelado rio Elba, arriscam a travessia da fronteira austríaca, ocupam as embaixadas da Alemanha Ocidental. O famoso senso alemão de ordem deixa de ter validade quando cidadãos da Alemanha Oriental se empurram mutuamente diante dos poucos e pequenos buracos existentes no muro".

Nas fronteiras da Hungria com a Áustria, amontoam-se os carros abandonados pelos alemães orientais. Se considerarmos que quem tem carro em país socialista pode considerar-se um privilegiado, podemos ter uma idéia de como vivem os demais, que não pertencem à Nomenklatura. Isto que, para ter acesso a um carro, um cidadão da RDA precisa esperar 18 anos. Se tiver a lembrança de candidatar-se à compra de um aos 18 anos, tudo dando certo - o que nem sempre acontece - poderá recebê-lo aos 36.

Monika Maron nos relata a perplexidade de um operário que teve permissão para visitar Colônia. Após retornar à sua casa, sentado em meio a seus familiares, perguntava-se, balançando a cabeça: "Mas o que foi que nós fizemos? Por que estamos sendo castigados desta maneira? Afinal de contas, não foram todos os alemães que perderam a guerra?"

Quando até os privilegiados decidem votar com os pés, podemos imaginar o que sofre quem está sob as botas da Nomenklatura. Poloneses e húngaros já não querem nem ouvir a palavrinha mística, comunismo. Lituânia, Letônia e Estônia denunciam o pacto secreto que as entregou ao jugo de Stalin e reivindicam sua integração ao bloco ocidental. A Moldova recupera sua língua e as repúblicas muçulmanas ameaçam rachar pelo meio o império moscovita. Gorbachov, com suas tímidas iniciativas, tem hoje diante de si uma esfinge de duas cabeças: balcanização ou uma solução à la Pequim. Por qual delas optará, isto se não for antes limogé do Kremlin? Este desfecho, creio, será dado a mim e aos de minha geração assistir. Marx morreu. Que a terra lhe seja leve. E, por favor, viúvas: não me venham falar de Trotsky. Remember Kronstadt.

Comecei este comentário baseado em informações de véspera. Os jornais de hoje me informam que os fugitivos da Alemanha Oriental já são sessenta mil. Abandonaram tudo o que haviam conseguido amealhar em vida: casa, apartamento, móveis, carro. A televisão nos mostra os rostos vibrantes do que já conseguiram atravessar a fronteira austro-húngara, portando apenas a roupa do corpo. A pergunta mais corrente, nestes dias, quando dois alemães se encontram em Berlim Oriental é: "ainda aqui?"

Gorbachov tem em mãos uma oportunidade raramente concedida a um estadista em um século: acelerar a desunião soviética, declarar a bancarrota do império, permitir que os povos respirem*. Ingleses, espanhóis e portugueses tiveram de renunciar ao colonialismo. Por que constituiriam os russos exceção? Balcanização, urgente! Antes que a Nomenklatura reaja e o mande para a Sibéria. Antes que a Europa do leste seja submetida à tétrica paz da Praça da Paz Celestial. Estamos vivendo, sem dúvida alguma, um crucial momento histórico.

A Europa testemunha hoje o estertor de suas mais desvairadas utopias. Lástima não mais estarem entre nós homens como Camus, Gide, Orwell, Koestler, Raymond Aron. Foram caluniados, julgados e condenados em vida, pelo crime então imperdoável de denunciar as tiranias travestidas de humanismo. Pena não estarem vivos Sartre, Simone, Aragón, Neruda. Para pelo menos assistirem a débâcle da ideologia que norteou suas vidas.

O problema é que muitos outros continuam vivos, particularmente na América Latina, onde mesmo na era das comunicações os epitáfios costumam chegar com pelo menos uma década de atraso. Aconteça o que acontecer no império moscovita, nossa intelligentsia precisará ainda de mais algumas décadas para descontaminar-se.

Entre os muitos livros que deveriam ser traduzidos no Brasil - mas não o foram, dada a censura onipresente dos ditos intelectuais de esquerda - está Le Dieu des Ténebres, antologia que reúne depoimentos de escritores que um dia militaram nas fileiras de Moscou, para logo abandoná-las, ao intuir a essência totalitária do marxismo. O livro foi publicado em 1950, em Paris. Entre os vários depoimentos, transcrevo estes trechos do escritor italiano Ignazio Silone:

"A verdade é que minha saída do Partido Comunista constituiu para mim uma data muito triste, um grave luto, o luto de minha juventude. E eu venho de um país onde se porta luto por mais tempo que alhures. Não nos libertamos facilmente de uma experiência assim intensa como a vivida na organização comunista. Dela sempre subsiste qualquer coisa que marca o caráter pelo resto da vida. Vejam, aliás, como são facilmente reconhecíveis os ex-comunistas. Eles constituem uma categoria à parte, como os padres apóstatas e os ex-oficiais de carreira. Hoje, o número de ex-comunistas é legião".

Silone assinava tais declarações há quatro décadas. Como estamos na América Latina, e longa é a jornada de um fanático até o entendimento, passo de novo a palavra ao italiano:

"A luta final terá lugar um dia entre os comunistas e os ex-comunistas, disse certa vez a Togliatti. Esta afirmação deu lugar a diversas interpretações. No entanto, o sentido que eu lhe atribuía era simples. Será a experiência do comunismo, pretendia eu dizer, que matará o comunismo. Assim sendo, não excluo que o golpe de misericórdia lhe venha da Rússia. Que acontecerá quando os milhões de pessoas de retorno dos campos de trabalho forçado na Sibéria possam livremente falar?"

Silone enganou-se, ao que tudo indica, quanto aos milhões que voltariam dos gulags: raros foram os que de lá voltaram. Mas milhões são os que hoje querem fugir do imenso gulag comunista ou, pelo menos, transformá-lo em um mundo habitável.

Marx morreu, caríssimos. E luto está completamente fora de moda.

* A União Soviética morreu dois anos depois, aos 26 de dezembro de 1991.


(Porto Alegre, RS, 01.10.89)