¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

segunda-feira, outubro 29, 2007
 
Crônicas da Guerra Fria (21)


NO OVO, A SERPENTE



Florianópolis - Mani Hayyá, ou Mani, o Vivente, nasceu no ano de 216, na Babilônia, e morreu flagelado em 277, acusado de socavar as bases da religião oficial masdeísta. Em uma vida intenso apostolado, que o levou à Índia, criou a religião que passou a levar seu nome e teve enorme influência tanto no Oriente como no Ocidente. Santo Agostinho foi um de seus adeptos mais fervorosos. Segundo Mani, no começo havia duas substâncias ou princípios: a luz, equiparada ao Bem e às vezes a Deus, e a Escuridão, equiparada ao Mal e às vezes à matéria. As duas substâncias são eternas e igualmente poderosas. Nada têm em comum e residem em distintas regiões. A Luz, ao Norte. A Escuridão, ao Sul. Cada uma das duas substâncias tem à sua cabeça um rei. A Luz, o Pai da Grandeza. A escuridão, o Reino das Trevas. Segundo alguns estudiosos, os cátaros teriam sido os últimos remanescentes do maniqueísmo no Ocidente. Tais estudiosos desconheciam, é claro, o PT e os petistas.

Mani, nós o encontramos hoje em qualquer salão paroquial, bar ou repartição pública. Em sua versão moderna, mas não muito, divide o universo em patrões e operários, ricos e pobres. Os patrões constituem o princípio do Mal, o Reino das Trevas. Os operários, por sua vez, são Luz e Salvação. O rico será sempre maldito, mesmo que sua riqueza tenha sido conquistada honestamente. E o pobre será sempre abençoado, já que a pobreza passou a ser sinônimo de virtude. No fundo, a interpretação romana dos Evangelhos que, ao considerar o lucro um pecado, dividiu o Ocidente, do ponto de vista econômico, em Norte e Sul.

Ao Norte, os países ricos e protestantes, pois para estes, ser rico é prova de ser benquisto por Deus. Ao Sul, os países pobres e católicos, pois para estes, dos pobres é o Reino dos Céus. A equação acaba fechando: o bem-estar dos países protestantes do Norte, para os quais Deus gosta mesmo é dos ricos, é financiado pela indigência dos países católicos do sul, para os quais Deus gosta mesmo é dos pobres. Tivéssemos uma ministro da Economia com tanto carisma como Jeová, estaria resolvido o problema das greves no Brasil.

Para quem leu os romances baseados no realismo socialista, deste stalinista impenitente, Jorge Amado, nada de novo. Os ricos são podres e devassos. Os pobres são nobres e castos. Pena que a teimosia dos fatos não confirma tão lindas teorias. Pois é a luta pela sobrevivência em condições adversas o que mais corrompe as classes menos favorecidas. Para um homem sem maiores problemas materiais, não é difícil ser nobre. Já para um pobre, não é fácil fugir à condição de pobre. A Igreja Católica, apesar de seus dois milênios de manipulação do poder, não parece ter entendido este paradoxo que de paradoxal nada tem: sendo rico, posso dar-me ao luxo da generosidade. Sendo pobre, mesquinharia é meu alimento cotidiano. Em nada me espanta, pois, que os teólogos ditos da libertação apoiem o PT, última flor, inculta e feia, do maniqueísmo.

Quem me vê assim falar, já deve estar pensando: o cronista é milionário. Equívoco do leitor. Sou bilionário. Ao chegar a Florianópolis, meu patrimônio era dois bi. Ou seja, uma bicicleta e uma biblioteca. Dada a histeria estival da ilha, desfiz-me da bicicleta e hoje estou reduzido à minha biblioteca. Nem por isso acho que ser rico seja necessariamente sinônimo de ser crápula, e pobre sinônimo de ser santo. O universo é por demais caótico para ser reduzido a uma linguagem binária.

Todo empresário é um canalha, dizia-me certa noite uma dessas meninas que vivem em uma cobertura e esperam na fila para pagar três mil dólares pelo sublime direito de passar fome e treinar guerrilha na Nicarágua. Dyonelio Machado, saudoso e injustiçado escritor gaúcho, disse-me um dia: "a data é inerente ao texto". Parodiando Dyonelio, eu diria que besteiras são inerentes à idade. E falo de cátedra: quando jovem, idiota e maniqueísta, eu também pensava assim. Mas o grave em minha interlocutora é que já estava entrando em sua quarta década de vida.

Em minha adolescência, intoxiquei-me de leituras, primeiramente cristãs, depois marxistas e finalmente anarquistas. Ou seja, dose tripla de maniqueísmo. Vivia em uma pequena comunidade do interior gaúcho, não tinha de lutar pelo meu pão de cada dia e considerava todo comerciante, empresário ou fazendeiro, um criminoso. Com o tempo, abandonei Cristo, Marx, Kropotkins, Bakunins e Trotskis da vida. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi-me e joguei para bem longe de mim aqueles conceitos que, se em teoria são lindos, nas prática jamais funcionaram.

Para o cachorro, o problema é simples, boa parte da água vai embora e o que sobra evapora. Ideologia é bem mais grave, adere como lepra à pele e por mais que a gente se sacuda sempre permanece alguma caspa. Por muito tempo transportei comigo este preconceito em relação ao capital e, por extensão, a seus detentores. Não fosse ter um dia saído de minha pequena cidade, conhecido outras culturas e gentes, faria coro com a jovem petista: todo empresário é um canalha.

Viajei por países onde o comércio é crime e lá vi miséria, escassez de toda e qualquer coisa, corrupção, desrespeito aos direitos mínimos dos cidadãos, ausência total de liberdade de expressão e de imprensa. (Que mais não seja, estão aí os jornais para confirmar o que há muito se sabia). Como também vivi em sociedades de consumo compulsivo. Embalado desde a adolescência pelos discípulos de Mani, sempre abominei as sociedades de consumo. Após ter vivido em algumas delas, a caspa começou a cair.

Sociedades capitalistas como Suécia, Alemanha ou França dão ao trabalhador condições mil vezes melhores que as ditas - e agonizantes, espero - ditaduras do proletariado. Pois as sociedades de consumo criam necessidades, em boa parte supérfluas, é verdade. Mas o supérfluo gera mercado e o mercado gera trabalho.

Queremos construir uma sociedade de classe média, declarava o Dr. Lula no domingo passado. Sem falar que a definição de classe média só tem sentido enquanto existir uma classe alta e outra baixa - ou então não seria média - o candidato do PT lembra-me anedota que corre na Europa sobre as diferentes visões de mundo de americanos e franceses. O americano, ao ver um cidadão dirigindo um Mercedes ou BMW, logo exclama: "Que maravilha, vamos construir uma sociedade onde todos tenham acesso a um carro destes". Já o francês pensa por outros rumos: "Que canalha! Vamos construir uma sociedade onde esse filho-da-mãe ande a pé como todo mundo". A classe média brasileira tem vivido mais de susto do que de rendas e o candidato petista apresenta ao país este brilhante programa, transformar o Brasil todo numa imensa classe média.

Todo empresário é um canalha, dizia a moça petista. E logo eu, que de berço não simpatizava com estes senhores, senti-me obrigado a defendê-los. Pois nesta república papeleira, onde investir no dólar, over ou ações é lucro certo e trabalho nenhum, penso que ao empresário devia ser erguido um monumento: é homem que nestes dias de lucro fácil e desonesto tenta investir em produção, quando poderia muito bem estar enchendo os bolsos apostando nas ficções decorrentes da inflação. Se há um herói nestes tempos de paz, neste Brasil de papel já em fase de hiperinflação, este herói é quem investe seu capital tentando produzir riqueza.

Vamos estabelecer a luta entre o capital e o trabalho - declarava Lula, há poucas semanas, aos jornais. Verdade que agora já fala em debate entre capital e trabalho, afinal votos valem mais do que coerência. Mas isto é o de menos. O trágico nestas primeiras eleições presidenciais, após três décadas de jejum cívico, é que o PT alimente sua campanha com a tosca doutrina de um persa de dezessete séculos atrás. O capital é o Reino das Trevas. O trabalho, o Mundo da Luz. Não é por acaso que Dr. Lula tem formação católica e tem recebido o apoio descarado desta instituição fundamentalmente maniqueísta, a Igreja Católica.

Ganhe ou não o partido dito dos trabalhadores estas eleições, o mal já está feito. As ruas estão tomadas por uma juventude fanatizada empunhando bandeiras e conceitos obsoletos. "A revolução, nos a faremos com os jovens" - dizia o ideólogo dos terroristas em Os Sete Loucos, de Roberto Arlt - "pois os jovens são estúpidos e entusiastas". O que nos evoca, tragicamente, os primeiros jovens que um dia empunharam na Alemanha, com a fé dos crentes, a bandeira com a cruz gamada.


(Joinville, A Notícia, 10.12.89)