¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 27, 2007
 
SÓ COIMBRA NÃO VIU



Amigos me enviam artigo intitulado "As Vejas que eu vi", do jornalista David Coimbra, de Zero Hora, de Porto Alegre:

Eis aí duas capas da Revista Veja sobre o mesmo assunto: Che Guevara. Há 10 anos entre elas. A primeira, publicada em 1997, foi feita a partir de uma matéria escrita por Dorrit Harazim, talvez a repórter de maior prestígio no Brasil. Dorrit viajou à Bolívia, onde foi assassinado o Che, e voltou com um texto descritivo, sustentado por cartapácios de documentos e pelo menos uma dezena de entrevistas. O título: "O Triunfo final de Che". Dorrit não faz uma apologia do guerrilheiro. Limita-se a investigar as ocorrências de seus últimos dias e tenta explicar como ele se transformou em mito. "Che Guevara tinha tudo para se tornar imortal", escreveu. "Era bonito, destemido e morreu jovem, defendendo conceitos igualmente jovens, como a solidariedade e a justiça social".

O texto de 2007 tem como título "Che: Há 40 anos morria o homem e nascia a farsa". Não é uma reportagem; é um grande artigo. Os autores não saíram para fazer a matéria e retornaram com a convicção de que Che foi um monstro. Não. Eles partiram da convicção de que Che foi um monstro para escrever a matéria. O texto se propõe a convencer o leitor da tese da revista. A Veja de hoje descreveu o Che desta forma: "Com suas fraquezas, sua maníaca necessidade de matar pessoas, sua crença inabalável na violência política e a busca incessante da morte gloriosa, foi um ser desprezível".


O jornalista parece não entender muito de jornalismo. Ninguém sai para fazer matéria quatro décadas após um fato ter ocorrido. A matéria já foi feita e refeita centenas de vezes. Os jornalistas de Veja saíram em busca dos fatos que vieram à tona nestes últimos quarenta anos e mostraram a verdadeira face do Che - a partir inclusive de seus próprios depoimentos - a face de um assassino de gatilho fácil. Coimbra parece esquecer que a imprensa brasileira viveu décadas dominada pelo pensamento de esquerda e foi este pensamento que construiu a imagem angelical do Che. Dorrit Harazim não escreveria de outra forma: era comunista. Para os comunistas, matar sempre foi legítimo, sempre que em nome da Causa. Se a Causa dá com os burros n'água e leva Estados à miséria e à ditadura, os comunistas se escusam com um vago dar-de-ombros: "foi um desvio da doutrina. Vamos tentar de novo".

Longa é a jornada das massas até o entendimento. Quem ousaria afirmar, nos anos 40, que Stalin era um assassino frio e havia matado milhões? Só ousaram afirmar isto alguns raros gatos pingados, como Orwell, Koestler, Kravchenko, Gide, Sábato e mais alguns, que foram condenados imediatamente como agentes do imperialismo. Mesmo quando Kruschov denunciou os crimes do stalinismo, no XX Congresso do PCUS, em 56, o clima era de incredulidade. Conheci velhos comunistas de Porto Alegre que choraram indignados e diziam ser tudo intriga dos serviços de informação ianques. Hoje, só o Niemeyer e o Suassuna são capazes de louvar Stalin. Foram necessárias décadas para desmitificar o tirano. Uma vez desmitificado, as esquerdas apoiaram-se em Lênin. O stalinismo era um desvio da doutrina do santo Vladimir Illitch Ulianov. Hoje se sabe que Lênin era também um assassino e que o terror começou sob sua tirania.

Pergunta-se Coimbra:

E agora? Em qual Veja devo acreditar? Sei a resposta: na de há 10 anos. Não porque a atual desmoraliza Che Guevara. Pouco me importa Che Guevara. Importa-me a Veja. Criei-me lendo essa revista, leio-a desde o tempo em que ela balizava o jornalismo brasileiro. Acontecia algo grave durante a semana, como, sei lá, a crise do Senado, e eu ia entender na Veja. Mas, por algum motivo, a Veja mudou. Não falo de Diogo Mainardi e outros colunistas. Esses estão emitindo opinião, e fazem-no com competência e graça. Posso até não concordar com o que escrevem, mas não preciso concordar com um colunista para gostar dele. Falo do jornalismo da Veja, da carne da revista.

Sim, a Veja mudou. E mudou para melhor. Apparatchiks como Dorrit Harazim nela não têm mais espaço. Mudou não só a Veja mas mudou também o mundo. Se até os anos 90 o Muro de Berlim era um bastião de defesa da "fortaleza assediada" do socialismo, hoje ninguém consegue mais sustentar esta potoca. Ocorre que estes fatos demoram a chegar a este nosso "continente puñetero", como dizia Augusto Roa Bastos. As universidades ainda estão cheias de múmias que construíram suas carreiras montadas no marxismo, e múmia não se dobra. Se esfarela. Professor algum, caquético e em fim de vida, ousaria admitir: minha vida toda foi um erro e minha obra não vale nada. Precisaremos mais duas ou três gerações para se estabeleça a convicção de que o marxismo foi a pior das pestes que infestou o século passado. De ponta a ponta.

O mundo mudou. O muro caiu. Só David Coimbra não viu.