¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 28, 2007
 
Crônicas da Guerra Fria (51)


REMEMBER NURENBERG



São Paulo - Quando Claire Sterling publicou A Rede do Terror, o coral costumeiro das esquerdas bradou em uníssono: ela é agente da CIA. Como agente da CIA era todo aquele que ousasse denunciar as ditaduras socialistas e o terrorismo por elas patrocinado. Agentes da CIA foram Gide, Kravchenko, Albert Camus, Ernesto Sábato. A pecha sobrou até para mim. Nos anos 70, por não participar dos desvarios das esquerdas, fui marcado na paleta como agente do DOPS, logo eu que tinha farto dossiê naquele departamento. Com o tempo, e graças à generosidade característica dos comunossauros, fui promovido a agente do SNI. Mais tarde, quando comecei a viajar, recebi a láurea máxima: agente da CIA.

Hoje, tais acusações sequer me fazem rir. Mas era duro, na época, sentar em um bar e sentir que na mesa ao lado todos silenciavam ou mudavam de assunto. Como também era doloroso ser excluído da cama das colegas de universidade, em função de intrigas ideológicas, justo naquela idade em que de mulheres andamos famintos.

Mas falava de Sterling. A Rede do Terror foi publicado no Brasil pela Nórdica Editorial, ao final dos anos 70, quando os Pinheiros Machados da vida pontificavam assegurando que a reunificação da Alemanha só seria possível se a Alemanha Ocidental se tornasse socialista. Sterling analisava o fenômeno do terrorismo nas democracias ocidentais e dava o endereço da escola: as ditaduras socialistas do Leste europeu, com especial menção aos serviços secretos da Tchecoeslováquia e Alemanha Oriental. Como pano de fundo de tudo, a Santa Madre Rússia, vulgo União Soviética. Escândalo! Calúnias do imperialismo ianque.

Com a derrocada do fascismo eslavo, tudo se torna mais claro. Na finada Alemanha Oriental, a Stasi não só formava terroristas, como também os protegia após seus crimes no lado de cá. Outras fábricas de assassinos funcionavam na Romênia, Tchecoeslováquia e Bulgária. Como também em Cuba, Nicarágua, Argélia e Líbia. Com a débâcle dos milenaristas, o reflexo nas estatísticas foi imediato. Recente relatório do Departamento de Estado americano - Patterns of Global Terrorism: 1990 - mostra que, no ano passado, os ataques terroristas tiveram uma redução de 14,6% no mundo todo. Qualquer coincidência com a queda do Muro de Berlim e suas conseqüências é mais que mera semelhança.

Com o que todos ganhamos, particularmente a América Latina. O terrorismo está perdendo terreno no continente. As “forças revolucionárias”, as “frentes populares”, as “uniões patrióticas”, eufemísticas expressões que abrigavam os celerados do século, em falta da mesada da Santa Madre Rússia, começam a pedir água. Na Guatemala - que antes de 89 ia de Guatemala a Guatepeor - a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (quanto menor a republiqueta, mais solenes se pretendem seus salvadores) se dispõe a conversar com o governo. Em Honduras, as Forças Populares Revolucionárias da Colômbia e o Exército de Libertação Nacional sentem seus dias contados e acenam com negociações. O Movimento Revolucionário 19 de Outubro, tão ao gosto de Gabriel Garcia Márquez, virou partido político. Em El Salvador, a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional deve assinar este mês um acordo definitivo de cessar-fogo.

Quanto a nossos vizinhos, no Uruguai os tupamaros tocaram as armas pela política e tomaram de assalto a prefeitura de Montevidéu, o que aliás explica esse obsceno namoro de nuestros vecinos com a alcaiceria de Porto Alegre. Na Argentina, os derrotados montoneros entraram na política na garupa do peronismo. No Chile, metade dos universitários da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, que em 1986 tentou matar Pinochet, já largou as armas. O Movimento de Esquerda Revolucionária não mais existe. Restam os fanáticos das Forças Rebeldes Populares Lautaro, que não estão gostando de ver o Chile vivendo um período de paz social e desenvolvimento econômico fora dos fracassados moldes marxistas. E no Peru, para vergonha da América Latina, persistem em suas paranóias os assassinos do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Desesperados à parte, parece que estamos entrando em uma era de certa lucidez. A hora é de fazer o balanço dos estragos que Marx (voluntária ou involuntariamente, isto é outra questão) fez à humanidade.

O curioso é que, para estes assassinos e seus cúmplices intelectuais, a impunidade parece ser direito adquirido. Posam de heróis e sequer lhes passa pela cabeça sentar no banco dos réus. Na Revolução do Nove de Novembro, se as vítimas se libertaram do tacão socialista, os opressores - exceção feita de algum Ceaucescu ou Honecker - continuam lindos e livres como passarinhos. Com a derrota de Hitler, os nazistas foram catados à unha onde quer que se escondessem. Stalin morreu de vez e seus cultores aí estão, empoleirados em prefeituras, órgãos culturais e universidades. Até hoje não entendi por que certo tipo de assassino merece Nurenberg, enquanto outros batizam ruas.

Na Polônia, pelo menos há um certo pudor, os comunossauros em climatério, como penitência simbólica, fazem uma hora de crucificação. A Administração porto-alegrense, auto-intitulada de Popular, bem que podia, em vez de memoriais a Prestes, inaugurar um monte Calvário. Ia faltar cruz no mercado, é verdade. Mas eu me divertiria muito se me dessem o papel do Arimatéia.

Os mais vivos saem pela tangente. Da Albânia a Angola, os tiranos e cúmplices da tirania começam a posar de social-democratas. Após ter de engolir Jonas Savimbi, da Unita, o MPLA-PT passou a chamar-se MPLA-PSD. Ou seja, o glorioso “Movimento Popular pela Libertação de Angola - Partido do Trabalho” passa agora a chamar-se “Movimento Popular pela Libertação de Angola - Partido Social Democrata”. Mudam as moscas e o marxismo é sempre o mesmo. Falar nisso, lembro que o Tarso Genro andou escrevendo uma ode qualquer à ditadura de Angola. Se algum leitor com espírito de humor tiver em mãos a escatológica obra, peço que ma envie para o endereço ao final destas, para que mais tarde possamos rir juntos através desta página.

Os comunossauros passam então a chamar-se social-democratas, quem diria? Volta às origens? Afinal de contas, até 1914 Lênin se considerava social-democrata. Quando fundou o Comintern, em 1919, impôs aos social-democratas a alternativa de continuarem filiados à Segunda Internacional ou romper com ela e filiarem-se à Internacional Comunista. No III Congresso do Comintern, em 1921, Trotsky e Varga deitaram doutrina:

“A diferença entre comunistas e social-democratas é que estes obstruem o verdadeiro progresso revolucionário ao fazer tudo quanto podem, seja no governo, seja na oposição, para ajudar a reconstruir a estabilidade do Estado burguês, enquanto que os comunistas aproveitam todas as oportunidades e todos os meios para derrubar ou destruir o Estado burguês”.

Pouco a pouco, para os fanáticos da deusa História, social-democracia virou insulto. Décadas mais tarde, muito militante foi expulso do partido, acusado de “capitulacionismo” ou “reboquismo”, por ter aderido ao bom senso. Acontece que social-democracia, de ideal utópico passara a ser experiência social relativamente bem sucedida. Como todo religioso, os comunistas detestam qualquer projeto viável do qual não tenham sido patrocinadores. E optar pela social-democracia, no jargão dos comunossauros, passou a ser sinônimo de reacionarismo atroz. Mas os tempos mudam, e com eles os conceitos. Depois de reduzirem à miséria um país potencialmente rico como Angola, os marxistas esboçam um discreto dar-de-ombros, como se nada tivessem a ver com o desastre. E passam a chamar-se social-democratas.

Social-democratas à la Lênin ou mais ao estilo de um Gunnar Myrdal ou Olof Palme? É o que resta saber. Pois toda a trajetória do marxismo não passou de manipulação de palavras. Tanto que agora, em Moscou, foi elaborado um novo dicionário para tentar fixar um sentido às velhas palavras. Primeira conclusão dos lexicologistas: democracia quer dizer nada. Ou qualquer coisa, tanto faz. De tanto ser usada a propósito de qualquer coisa, a palavra perdeu todo e qualquer sentido no mundo socialista.

O mesmo parece que vai acontecer à social-democracia. Já vi muito agitprop fazendo proseletismo, na imprensa e na universidade, tentando provar que o rumo da humanidade só podia ser mesmo o socialismo, tanto que até os países nórdicos já haviam optado por este sistema. Quando Mitterrand foi eleito na França, não faltou tupiniquim se regozijando com os “avanços do socialismo". Como se os regimes da França, Alemanha ou países nórdicos - basicamente capitalistas - tivessem algo a ver com a miséria e barbárie predominantes nas democracias ditas populares.

As denúncias de Claire Sterling, se há dez anos atrás podiam suscitar certa prudência no leitor mais céptico, são agora de uma luminosidade mediterrânea, como adoram dizer os magistrados para insinuar que estão voltando de uma excursão à Europa. A fonte geradora do terrorismo era Moscou. Muito bem. Pergunta a quem interessar possa: os “humanistas” que financiaram, organizaram e estimularam guerrilhas, seqüestros, massacres, assassinatos, esta gente não vai ser julgada?

Pelo jeito que o mundo gira, ao que tudo indica, até as esquerdas preferem esquecer Nurenberg.


(Porto Alegre, RS, 18.05.91)