¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, novembro 30, 2007
 
Crônicas da Guerra Fria (52)


QUESTÕES TEOLÓXICAS


São Paulo - ¿Como admitir que a Deus non lle saíra o home un pouco mellor de querer crealo á súa imaxe e semellanza? ¿En que cabeza cabe que o home, esse saco de inmundicia e de soberbia, a partes iguais, poida parecerse a Deus? ¿Como Deus na súa infinita bondade, na súa infinita sabedoria, puido errar de semellante estrepitosa maneira co invento do home, esta besta débil e depredadora que se entretén coa guerra e morre de cáncer? Non, non, o erro orixinase ó confundir a Deus, esa noción eterna e, por tanto, que nin empeza nin acaba, con química e o ciclo do carbono, que son duas nocións continxentes e abrangibles con maior ou menor esforzo.

Se o leitor entendeu o que leu acima, meus cumprimentoss: conhece mais uma língua e não sabia. A língua de tão saborosa pronúncia é o galego, e o texto, intitulado Disquisicións teolóxicas, é de Don Camilo José Cela, prêmio Nobel de literatura, do qual tive a honra - e o compromisso - de traduzir dois romances ao brasileiro. De certa forma, foi Don Camilo que me levou à Galícia. Fascinado com aquela música que ouvimos em Mazurca para Dois Mortos, fui dar uma olhadela naquelas “xeografias”. Em Santiago de Compostela, na estação rodoviária, encontrei Marina Pérez Rodriguez, atenta observadora dos trens que passam por aquela cidade de sonho e sempre disposta a introduzir o viajante perplexo na magia da Galícia. Pois é Marina que me envia esta crônica de Cela. Sei la por quê, lembrei de Jeffrey Dahmer, o canibal de Milwaukee.

Matou 17 pessoas - pelo que se sabe até agora -, decepou-as e comeu partes de suas vítimas, tendo guardado alguns órgãos no refrigerador para comer depois. Praticava sexo com seus convivas tanto quando vivos como depois de mortos. Quanto a comê-los, só degustava a carne daqueles que mais o atraíam. Em Paris, tive ocasião de cruzar com um destes seres de paladar tão exigente. Estudávamos literatura na mesma universidade, La Sorbonne Nouvelle (Paris III). Meu colega, cujo nome me escapa, era japonês e acabou comendo a namorada. Literalmente, bem entendido. Conservou durante semanas pedaços da moça e os fritava aos poucos.

Amor é fogo. Hoje, meu colega de estudos comparatistas vive no Japão, está livre e vai escrever um livro. Que certamente vai virar filme e lhe trará rios de dinheiro. Eu, que só comi minhas namoradas de mentirinha, continuo tendo de lutar pelo pão de cada dia.

Há uma constante nas fotos de Dahmer, quando ele desfila ante seus semelhantes: os homens que vão julgá-lo - entre os quais, bem ou mal, nos incluímos - olham o canibal com terror e perplexidade. Como se Dahmer pertencesse a outra espécie que não a humana. Quando na verdade nada fez senão praticar um gesto que está nos fundamentos da cultura cristã. Mais ainda, é exercido diariamente em todos os países do Ocidente.

No Deuteronômio, um dos principais livros da Bíblia, a hipótese é aventada como ameaça: “Então, na angústia do assédio com que o teu inimigo te apertar, irás comer o fruto de teu ventre: a carne dos filhos e filhas que Javé teu Deus te houver dado”. Em Jeremias, enciumado com os cultos a Baal, Javé anuncia os dias em que o vale de Ben-Enom se chamará Vale da Matança: “Eu farei que eles devorem a carne de seus filhos e a carne de suas filhas: eles se devorarão mutuamente na angústia e na necessidade com que os oprimem seus inimigos e aqueles que atentam contra a sua vida”.

Nos cinco poemas das Lamentações, livro atribuído a Jeremias, cujo tema central é a destruição de Jerusalém, volta o tema recorrente: “As mãos de mulheres compassivas fazem cozer seus filhos; eles serviram-lhes de alimento na ruína da filha de meu povo”.

Em Ezequiel, contemporâneo mais jovem de Jeremias, que denuncia a perversidade de Jerusalém e proclama a iminência de seu assédio e destruição, Javé volta a lembrar: “Farei no meio de ti o que nunca fiz e como não tornarei a fazer, isto por causa de todas tuas abominações. Por esta razão os pais devorarão os filhos, no meio de ti, e os filhos devorarão os pais”.

De fato, o canibalismo só ocorre no II Reis. A fome impera durante o cerco de Samaria, quando uma mulher diz à outra: “Entrega teu filho, para que o comamos hoje, que amanhã comeremos o meu”. A primeira mãe cozinha seu filho e o divide com a segunda e, no dia seguinte, lhe pede: “Entrega teu filho para o comermos”. Mas a outra foge ao trato e esconde o filho.

Maldição no Antigo Testamento, no Novo o canibalismo se torna virtude. Durante a Santa Ceia, Cristo oferece seu corpo e seu sangue para que os participantes entrem em contato com o sacrifício, comendo do sacrificado. É o que os católicos romanos chamam de transubstanciação. Todo católico, quando comunga, não está bebendo o vinho ou comendo o pão como símbolos do corpo de Cristo. Está, de fato, bebendo o sangue e comendo a carne do Cristo.

No sacramento do altar, depois da consagração, não há senão o corpo e o sangue de Cristo. A doutrina da igreja Católica é clara. Segundo Santo Ambrósio, “antes da benção há uma espécie que, depois da consagração, se transforma no corpo de Cristo”. Santo Hilário confirma: “sobre a verdade concernente ao corpo e sangue de Cristo, não há lugar para dúvidas. Pois, conforme a afirmação mesma do Senhor e nossa fé, a sua carne é verdadeiramente comida e o seu sangue verdadeiramente bebido. Assim como Cristo é verdadeiramente filho de Deus, assim a carne que recebemos é verdadeiramente carne de Cristo, e a bebida é verdadeiramente seu sangue”.

São Tomás, na Suma Teológica, encerra a discussão, com uma ressalva: “que o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente no sacramento do altar, não podemos aprendê-lo nem pelos sentidos nem pelo intelecto; mas só pela fé, que se apoia na autoridade divina”.

Tomás, o Doutor Angélico, vê na eucaristia a suprema celebração da amizade: “E porque é próprio por excelência à amizade, conviver com os amigos, Cristo nos prometeu como prêmio sua presença corporal. Por isso ele próprio disse: O que come minha carne e bebe meu sangue, esse fica em mim e eu nele. Logo, este sacramento é o máximo sinal da caridade e o sublevamento de nossa esperança pela união tão familiar de Cristo conosco”.

Os jornais me falam da infância de Dahmer, dos pais de Dahmer, dos traumas de Dahmer. Só não me contaram até agora qual é a religião de Dahmer, se é cristão ou luterano, calvinista ou simplesmente ateu. Seja qual for sua condição, nasceu em um caldo cultural cristão. Talvez jamais tenha ouvido falar de Tomás de Aquino. Mas intuiu muito bem suas lições: só se deve comer a carne de quem se ama.

Falava de Cela, que ao falar do homem, pela voz de seus personagens, o define como um “saco de inmundicia e de soberbia”. É o que muita gente deve estar pensando de Jeffrey. Herdeiros de uma tradição cultural que tem o canibalismo como suporte, não vejo como condená-lo. Talvez o leitor não tenhas se dado conta, mas Jeffrey é nosso irmão. Afinal, somos filhos do mesmo pai, daquele pai que sempre adorou sangue. Pediu inclusive a Abraão que sacrificasse seu filho Isaac. Não faltará quem objete: mas Isaac foi poupado. Pode ser. Mas na primeira esquina do milênio, Javé ferrou o Cristo. De cuja carne muito comemos, com amor e devoção, nos dias de juventude.


(Porto Alegre, RS, 17.08.91)