¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 28, 2007
 
MINHAS CIDADES DILETAS - PARIS



Voltando às cidades onde é melhor morar. O documento da ONU está provocando um inusitado orgulho no jornalismo patrioteiro nosso. A Folha de São Paulo, por exemplo, mancheteia:

BRASIL ENTRA NO GRUPO DOS PAÍSES COM MAIS ALTO IDH

Na linha fina:

Documento anual das Nações Unidas afirma que brasileiros vivem em elevado grau de desenvolvimento humano

Ora, façam-me o favor! Estamos num inglório 70º lugar, logo após a Macedônia e a Albânia. Da Macedônia até entendo, estive lá nos anos 80, quando ainda era província da ex-Iugoslávia. Não vi em Skopje, a capital, um único mendigo nas ruas. Não vi os picos de riqueza do Brasil, mas muito menos nossos picos de miséria. Quanto à Albânia, a ONU que me desculpe, mas não consigo acreditar que tenha melhor IDH que o Brasil. Ainda nos 80, sob a ditadura de Enver Hoxha, era o país mais miserável do continente europeu, onde até mesmo os automóveis particulares eram proibidos. Até hoje lembro de um episódio significativo. A agricultura era feita na base da enxada e acusava-se o regime de Hoxha de não ter conseguido chegar ao trator. O ditador pôs então seus engenheiros a trabalhar e acabaram produzindo um trator, quadrado e um tanto antediluviano, mas trator. Um só trator, é bom salientar. Provado que o regime albanês conseguira fabricar um trator, o trator foi para um museu. Duvido que nestas últimas três décadas a Albânia tenha chegado a uma condição melhor que a brasileira.

O mesmo diga-se da Romênia, situada em 60º lugar. Ora, estive lá em 81 e confesso jamais ter visto em um país tanta miséria e escassez, a ponto de as pessoas disputarem a tapa um pedaço de carne em mercados de gôndolas vazias. Nem mesmo na Argélia ou Egito. Não acredito que de lá para cá a Romênia tenha se desenvolvido a ponto de suplantar o Brasil em qualidade de vida. Mais ainda: na lista da ONU, Cuba ocupa o 51º lugar. Não queiram convencer-me de que um país, onde as pessoas se jogam no mar em precárias embarcações para fugir ao horror, esteja melhor que o Brasil.

Volto então às minhas cidades diletas. Em segundo lugar, coloco Paris. Quando sonhava em bater pernas pelo planetinha, dizia, Paris sequer constava de meus projetos. Porque não constava, não sei. Mas Paris, em meus dias de guri, não me fascinava. A idéia que eu fazia da cidade era a de uma capital cheia de chaminés e túneis, herança das leituras dos Mistérios de Paris, de Eugéne Sue, dos três mosqueteiros e de mais alguns romances de capa-e-espada.

Entrei em Paris lá por 71. De trem. Isto é importante. A chegada de avião é muito brusca. A gente cai no aeroporto e de lá ruma direto à cidade. Por trem, é diferente, a cidade vai se revelando aos poucos. O trem vai até o centro e em marcha lenta. Aos poucos aquela arquitetura horizontal foi se mostrando, lá estavam as chaminés da Paris de Eugéne Sue e tudo o que eu imaginava da cidade. Os túneis, fui conhecer depois.

Minha primeira passagem foi rápida. Eu queria conhecer o continente todo e tinha pouco tempo para Paris. Além disso, jovem quando viaja sempre viaja com pouca grana. Não dá pra conhecer o melhor da cidade. Pretendia ir rumo ao Norte e contava meus centavos. Dos restaurantes, conheci apenas os mais acessíveis. Mas as baguetes, patês, queijos e vinhos, que tomei no hotel com minha Baixinha, foram suficientes para gostar de Paris. Com pouca grana, eu tinha acesso ao que de melhor a França oferece.

Voltei várias vezes a Paris. (A bem da verdade, volto quase todos os anos). Em 1977, foi para ficar. Tinha uma bolsa do governo francês e a correspondência da Caldas Júnior. Isto não constituía uma fortuna, mas já dava para freqüentar restaurantes com certa assiduidade. Deixei-me então conquistar pela cidade.

Certamente é a mais linda das grandes cidades do mundo. Para encantar-se não se paga nada. É só sair caminhando, para qualquer lado, e Paris vai se oferecendo com seus encantos. Você sai a passear sem maiores compromissos, passa pelo magnífico parque de Luxembourg, segue pelo boulevard Saint Michel e tropeça no Sena. À esquerda, a Conciergerie, à direita a Notre Dame, à esquerda o Palais de Justice e a Sainte-Chapelle, mais adiante o Louvre e o Pompidou, um pouco mais à direita o Palais Royal e a Place des Vosges, Opera e Madeleine, e por aí vai. Mude de bairro e lá estão la Dame de Fer – a torre Eiffel – os Champs Elysées e o Arco do Triunfo, ou o Pantéon, ou a Saint Sulpice ou as Tulherias. E por aí vai. Por onde for, é lindo. Este degustar Paris não custa nenhum vintém.

A cidade é pequena, pelo menos vista a partir da ótica deste monstrengo que se chama São Paulo. Pequena mas inesgotável. Vivi quatro anos em Paris e sempre que vou lá descubro algo novo. Vivesse dez anos, ocorreria o mesmo fenômeno. A cidade está cheia de encantos escondidos, que não se revelam ao turista. Você quer ver, dentro de Paris, um vilarejo bucólico? Vá até a Butte aux Cailles, no XIII, e se sentirá de repente no interior da França. Quer fazer um passeio insólito, mais ou menos inimaginável numa metrópole? Vá até a Promenade Plantée. Quer flanar numa arena romana? Entre numa portinhola discreta da Rue Monge, ali pelo nº 53, e você cai de repente na Roma antiga. Quer catacumbas? Vá até Denfert-Rochereau e desfile por paredes sufocantes de tíbias, fêmures e crânios.

Quer boa gastronomia, diversificada e representativa de cada região da França, de cada país da Europa? Basta olhar à sua volta. Quer vinhos de distintas cepas? Sirva-se a gosto. Uma das coisas que me agrada em Paris é que, como cada cruzamento de rua tem quatro esquinas, é cartesianamente dedutível que também tenha quatro restaurantes. Você quer produtos de tecnologia de ponta? Vá às três Fnacs de Paris. Quer ter uma sensação de Nova York? Pegue um R.E.R e vá até La Défense. E segure o queixo pra não cair.

Estive em Paris nos dias em que foi inaugurado o centro Georges Pompidou. A construção permaneceu o tempo todo escondida por imensos tapumes. Que foram derrubados, de repente, durante a noite. No dia seguinte, escândalo. Ninguém conseguia dizer se aquilo era lindo ou horroroso. Houve jornal que falou em “architeture du néant”, ou seja, arquitetura do nada. Nem eu soube como reagir. Não conseguia decidir se gostava ou não daquela coisa, que ora parecia fábrica com suas tripas de fora, ora parecia navio ancorado às margens do Sena. Hoje, não consigo imaginar Paris sem o Pompidou. A “coisa” está perfeitamente integrada ao antigo Marais, como se lá sempre tivesse existido.

Paris é paradoxal, pelo menos para nós, latinos. Costumamos alimentar uma relação de amor e ódio com a cidade. Durante os anos que lá vivi, xinguei Paris todas as semanas. Ernesto Sábato viu isto muito bem em Abadón, o Exterminador: “Y mientras hacés gestiones para que la Embajada Francesa te dé una de esas bequitas que luego sirve para hablar mal de Francia...” Falei mal da França o tempo todo em meus dias de Paris. Certo dia, um bom amigo me observou: falas mal de Paris, mas é a cidade para a qual mais voltas. Tinha razão. Já voltei mais vezes a Paris do que a qualquer cidade do mundo. Voltei lá mais vezes do que à cidade onde vivi minha adolescência. A conheço melhor do que São Paulo, onde vivo há 17 anos. Por uma razão simples: Paris é linda e cada esquina fica grudada na memória. Minha alma, eu a perdi por lá.

Então, Paris é a segunda cidade onde mais me parece ser bom viver. É a segunda porque tive a desgraça – ou ventura, como quisermos – de conhecer Madri. Não conhecesse Madri, seria certamente a primeira.