¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 23, 2007
 
AS ANGULAS E O ESPÍRITO NATALINO



Entre outras, sou devoto da culinária espanhola. Mas há duas iguarias nas quais não vejo graça alguma, os percebes e as angulas. Estamos no Natal, o auge da procura pelas angulas. Deixo então os percebes para outro dia.

Angulas são filhotinhos de enguias. São bichinhos com pouco mais de cinco centímetros, que lembram um espermatozóide. Em suma, uma enguia minúscula. Em si, não têm gosto de nada. Apenas do tempero com que se as tempera. Caríssimas. Neste Natal, estão custando cerca de 1.200 euros o quilo. Em março passado, quando a procura é baixa, as angulas eram o prato mais caro do Sobrino de Botín: 115 euros. Para se ter uma idéia do preço, o segundo prato mais caro do restaurante mais antigo da Europa era o cochinillo, uma das glórias culinárias da Espanha: 20 euros. O cordero lechal – outra excelência espanhola – custava o mesmo. Pelas angulas, prato sem sabor algum, pagava-se praticamente seis vezes mais.

Em meus dias de Madri, meu guru foi Enrique Sordo, autor de España, entre trago y bocado, jornalista que faz um excelente apanhado das cozinhas regionais espanholas. Recorro a Sordo para definir as angulas.

“Durante muito tempo, estes peixinhos foram um grande mistério, até que as investigações de Schimch conseguiram esclarecer que se tratavam de filhotes das enguias. Estas desovam no mar de Sargaços. Põem quantidades imensas de ovos, dos que saem as larvas ou leptocéfalos. Estas larvas emigram em massa até a desembocadura dos rios europeus: sua emigração dura dois anos e, quando chegam, se convertem em angulas. Ao chegar medem 7 ou 8 centímetros. Depois, no final de inverno ou começo de primavera, bancos de milhares de angulas atravessam os estuários e remontam os rios.

“Ao que parece, há angulas em todas as águas marinhas européias, exceto no mar Negro. Mas, em verdade, o primeiro povo da Europa que as consumiu com deleite foi o basco, contagiando o resto da península com este são costume. (...) Se são compradas vivas, são postas em um recipiente com água e nesta se introduz um pacote que contenha tabaco negro picado e se pressiona constantemente para extrair a nicotina e outras substâncias que produzem a morte dos peixinhos. As angulas podem ser preparadas em tortilla, prato delicioso, mas o mais freqüente é fazê-las ao pil-pil, em uma panela de barro, com azeite, alho e malagueta. Este procedimento, segundo Busca Isusi, encobre totalmente o fino mas escasso sabor das angulas escaldadas”.

Isto é, até Busca Isusi concorda com o escasso sabor da angulas. Eu as degustei uma vez, paguei caríssimo e me senti roubado. Assim, é com certo conforto que leio na edição de hoje de El País, que “o desorbitado preço das angulas é a primeira razão pela qual este produto deixou de fazer parte dos menus na Espanha, embora se possa esgrimir outra para desejá-las com menos pesar: seu perigo real de desaparição. Existiria um terceiro argumento, esse sim, controvertido, como é o duvidoso valor gastronômico que os mais ousados atribuem aos filhotes da enguia, cuja crescente demanda por parte do mercado asiático elevou de maneira notável o percentual das exportações e, por sua vez, a pesca e o preço destes alevinos cada vez mais escassos”.

Sempre me julguei o único soldado de passo certo, ao achar que as tais de angulas não têm sabor algum. Parece, no entanto, que alguns espanhóis concordam comigo. Xabier Gutiérrez, pesquisador do laboratório do restaurante Arzak de San Sebástian, julga que o valor culinário da angula é “um mito que é preciso quebrar”. E um auxiliar do cozinheiro Juan Maria Arzak, em um momento de extraordinária coragem intelectual no País Basco, considera que “a angula não tem gosto de nada. É preciso deixá-la crescer, que desenvolva gorduras e aromas até converter-se em uma enguia de quilo, que é superior”. Este homem de confiança de Arzak está ciente de que vão chamá-lo “de tudo” por esta heresia.

Nestes dias natalinos, há uma obsessão pelas angulas na Espanha. Como pode um prato caríssimo – certamente o mais caro da culinária espanhola – ser o objeto de desejo das gentes, se não tem sabor algum? Só pode ser desejo de status. Se é caro, deve ser bom.