¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, dezembro 22, 2007
 
EU, EMÉRITO ORNICIDA



Foi divertido ouvir o rufar de asas de dezenas de ornitólogos, em função da crônica que escrevi há cerca de um ano. Segundo um dos missivistas, são necessários oito anos para a formação de um ornitólogo. Discrepo. Ornitólogos somos todos nós. Não sendo profissão regulamentada pelo Ministério do Trabalho, é profissão que não existe. Ornitólogos são equiparáveis a psicanalistas ou antropólogos. Do ponto de vista legal, não existem. Ornitólogo ou psicanalista é quem se diz ornitólogo ou psicanalista e estamos conversados.

Vou mais longe. Ornitólogos são como deuses. Não existem. Em meio a isso, muito me divertiu saber que estou a serviço de empresas multinacionais. Não imagino qual o interesse de uma multinacional em exterminar pássaros no Brasil.

Last but not least, devo confessar que fui emérito ornicida. Se a palavra ainda não existe, eu a crio. Sim, matei pássaros a granel em meus dias de guri. Era o esporte predileto de toda criança que nasceu no campo. Não éramos sádicos exterminadores de vida, nada disso. Era uma espécie de tiro ao alvo. Mais ainda, tiro a um alvo móvel. Minha glória era matar um pássaro em pleno vôo.

Meu dia começava com uma ida à sanga, que é como se chamam os rios no Rio Grande do Sul. Para juntar pedras. Levava comigo uma espécie de cartucheira e mais dois fios de barbante. A cartucheira, eu as enchia de pedras, munição para matar a bicharada. Com um bodoque, ia aniquilando a fauna do pedaço. Ao voltar de minhas incursões diárias, os fios de barbante eram fieiras de pássaros mortos.

Havia uma certa ética naquela matança. João-de-barro e quero-quero eram aves que não se podia matar. Eram honestos e trabalhadores. O quero-quero, além disso, era um atalaia dos pampas. Durante as revoluções que sacudiram aqueles pagos, sempre alertou para a chegada do inimigo. Chupim podia matar, era bicho parasita que vivia em ninho alheio. Caranchos, chimangos, quiriquiris, caturritas, era dever matar. Os rapaces atacavam pintos nos galinheiros, as caturritas destruíam pomares e milharais. A prefeitura inclusive pagava por cada bico de caturrita morta. Suponho que os ilustres ornitólogos que me xingam não tenham nada contra matar caturritas. O dilema é simples: ou a caturrita, ou a lavoura.

A humanidade perdeu algo com meus ornicídios? Diria que nada. Por um lado, não consegui exterminar espécie alguma. Por outro, se exterminasse alguma espécie, ela continuaria viva em outros rincões. A humanidade perdeu algo com as milhares de espécies que se extinguiram desde que existe vida na Terra? Ao que tudo indica, não. Diria mais: a extinção dos megapredadores em muito terá facilitado a sobrevivência do homem no planetinha.

Se me arrependo destes pecados? Nada disso. Caçar pássaros fazia parte de minha infância. Como fez parte da infância de todo piá de campanha. Hoje, sou incapaz de matar uma formiga. Na janela ao lado do computador, tenho um recipiente com sucos para atrair pássaros. E trabalho ao lado de beija-flores, pardais, sabiás e canarinhos.

O que não se pode admitir, senhores ornitólogos, é impedir a construção de barragens em função de um passarinho. Privar de luz, energia, calor, refrigério e boa água - isto é, de saúde - centenas de milhares de pessoas só porque em determinada região vive o curiango-do-banhado. Homem sendo, sou antropocêntrico. Fosse pássaro e tivesse consciência disto, seria certamente ornicêntrico.

Não sou pássaro. Primeiro o bem-estar de minha espécie. Depois, o das outras. Este culto aos pássaros está tomando ares de religião. Como toda religião, só atrai fanáticos e ignorantes. O que explica, a meu ver, o mal tratar do vernáculo por boa parte de meus missivistas. Gente que sequer domina a própria língua e pretende salvar a humanidade.