¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 16, 2007
 
MINHAS CIDADES DILETAS - VIENA



Uma lista de cidades diletas será sempre algo muito subjetivo. Leitores me perguntem porque nunca escrevo sobre Londres. É simples: não consigo gostar de Londres, nem do universo anglo-saxão. Mais ainda, não consigo me entender com o mundo anglófono. De minhas experiências, deduzi que quem é apaixonado pelos países latinos, em geral não tem muito apreço pelo Reino Unido e Estados Unidos. E vice-versa. Minha primeira restrição a Londres é gastronômica. Alguém já ouviu falar de cozinha inglesa? Eu não. Nas duas únicas vezes que estive em Londres, me refugiava nos restaurantes italianos ou chineses. Mas isto já faz mais de vinte anos. Minha filha andou por lá este ano e achou que hoje eu já não teria problemas com culinária.

Pode ser. Mas resta um outro, os pubs. Detesto a ambiência de pubs. Isso de servir-se no balcão, de pagar cada consumação no momento de recebê-la, me afasta definitivamente de qualquer cidade. Já devo ter contado de meu súbito desejo de Espanha quando andava por Nova York. Eu pedia uma cerveja e lá vinha a garçonete de nota em punho: só isso? Ora, como posso saber se vou tomar só uma cerveja? Depende da qualidade da cerveja, da dimensão de minha de sede, do clima do bar, do interesse de minhas leituras, das conversas com minha parceira de mesa. Me acometeu então uma imensa saudade de meus garçons de Madri. Quando pedia a conta, após duas ou mais horas de bar, ouvia como resposta: ya?

Sendo homem que viaja para curtir bares, Londres está excluída das minhas diletas. Claro que é preferível ao Cairo, Argel, Tunis ou Nápoles. (Esta é a cidade mais feia e desagradável que conheço na Europa). Posso até voltar lá para ver como é hoje. Mas nesta lista me proponho a falar de cidades agradáveis para morar e Londres – pelo menos segundo meus critérios – não é uma delas.

Em quinto lugar, eu elegeria Viena. Cidade também horizontal, como gosto, arquitetura soberba, imperial, muita ópera e, fundamentalmente, muitos cafés. Eu imaginava que os cafés mais lindos do mundo estavam em Paris e Madri. É que não conhecia Viena. Encrave avançado no Leste europeu, a cidade fica um pouco fora de mão quando se viaja de sul a norte pelo velho continente. Até que um dia resolvi visitá-la.

Dos castelos e palácios, teatros e óperas, já nem falo. Falarei dos cafés, o plat de résistance de Viena. Nos dois sentidos, a bebida e os cafés propriamente ditos. Em 1983, Viena celebrou os três séculos de sua descoberta da bebida. Hoje, a cidade tem cerca de 560 cafés e mais de 680 cafés-restaurantes, pelo menos 1.200 expresso-bares e cerca de 250 cafés-confeitarias. Os cafés, conforme dito secular, constituem a segunda sala dos vienenses. Segundo Alfred Polgar, reúnem pessoas que querem estar sós, mas precisam de companhia para isso. Neles se pode tomar desde o espresso forte até o franziskaner, mais suave, passando pelo einspänner, o kleiner brauner, le kapuziner e mesmo o dito café turco. Os cafés assumem versões com álcool e sorvetes e custam até mais que uma taça e vinho.

Ou mais que uma entrada de ópera. Certa vez, eu degustava um destes cafés em frente à Staatsoper. “E se fôssemos à ópera?” – sugeriu minha Baixinha. Agora? Nem sonhar – objetei – supondo que precisasse reservar vaga semanas antes. “Tentar não custa nada” – voltou a insistir a Baixinha. De fato, não custava nada. Tentamos. Havia lugares na última galeria, em pé, reservados a estudantes. Em cartaz, O Rapto do Serralho, de Mozart. Preço, dois euros. O café custava cinco.

Café Central, Landtmann, Sacher, Hawelka, Demel, Karlsplatz, Frauenhuber, Prückel, Imperial, Sperl, Griensteidl. Muito mármore, muita madeira, muito pó dos séculos. Neste café vivia o Freud, neste outro conspirava Trotski, aqui estiveram Wagner e Hitler, ali tocou Mozart. Aqui bebia o Stefan Zweig, neste escrevia o Kloester, Klimmt preferia este outro, naquele ali discutia Karl Kraus. Este era do Elias Canetti, este outro do Arthur Schnitzler. Passei dias encantados vagando entre um café e outro, desesperado pela consciência de saber que não conseguiria fazer todos aqueles cafés divinos de Viena. Em todos, jornais do mundo todo. (Exceto do Brasil, é claro. Mas quando viajo não quero nem ouvir falar de Brasil). Um deles, até há poucos anos, oferecia a seus habitués nada menos que trezentos jornais.

De chegada, uma instituição local me desagradou. Em cada café, deixa-se o casaco na chapelaria, pelo que se paga um euro. Ora, minha parka é meu escritório, nela estão minha agenda, meus postais e canetas, meus livros. Além disso, não é simpática a idéia de pagar para entrar em um boteco. Com o tempo, relaxei. Em Viena, como os vienenses. Sem falar que, por um euro, tenho uma hemeroteca ao alcance das mãos.

Viena é uma das cidades nas quais gostaria de ter morado. Mas nem sempre se come pão quente. A quem um dia quiser visitá-la, eu diria: deixe de lado castelos e museus. Entregue-se aos cafés. Com a ciência de que, mesmo ficando lá um mês, você não conseguirá curtir sequer um décimo dos cafés que a cidade oferece.

Last but not least, mesmo sendo o mais empedernido dos ateus, assistir a uma missa em Viena é sempre um grande momento de arte.