¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, janeiro 22, 2008
 
ARMADILHA PARA NEGROS



Ainda há pouco, os movimentos negros brasileiros reivindicavam a eliminação do item cor nos documentos de identidade. Com a malsinada lei de cotas que hoje assola o ensino superior, os negros insistem em declarar a cor na inscrição no vestibular. Estes mesmos movimentos negros sempre consideraram que qualquer critério supostamente científico para determinar a cor de alguém é racista. Quem então é negro para efeitos legais? No caso da lei estadual no Rio e do projeto de lei federal, o critério é o da auto-declaração. Pardo ou negro é quem se considera pardo ou negro, mesmo que branco seja. Ora, neste país em que impera a chamada lei de Gérson, não poucos brancos se declararam negros no último vestibular da UERJ, a primeira universidade pública brasileira a estabelecer o sistema de cotas. Grita dos líderes negros: vamos determinar cientificamente quem é branco e quem é negro e processar os brancos que se declaram negros. Ou seja, as palavras de ordem da afrodescendentada são mais cambiantes que as nuvens. Mas mudam num só sentido, na direção de obter vantagens para os negros, não só dispensando méritos como também passando por cima dos eventuais méritos de quem se declara branco.

O atual presidente da República está longe de ser o primeiro apedeuta a assumir o poder neste país. Câmara e Senado estão repletos de analfabetos jurídicos, que nada entendem da confecção de leis nem sabem sequer distinguir lei maior de lei menor. Embalados por palavras de ordem estúpidas, em geral oriundas dos Estados Unidos, criam leis irresponsáveis, com a tranqüilidade de quem não precisa prestar contas a ninguém. É o caso da lei de cotas. Só agora, após o vestibular da UERJ e de uma enxurrada de ações judiciais, argutos analistas descobriram que a famigerada lei fere o artigo 5º da Constituição: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza."

Não bastasse esta tremenda mancada jurídica, que daqui para frente só servirá para entupir ainda mais os já entupidos tribunais - gerando grandes lucros aos advogados, os reais beneficiados pela lei de cotas - o presidente da República, mal assumiu o poder, sancionou lei que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino Fundamental e Médio. As aulas abordarão desde a história da África e dos africanos até a luta dos negros no Brasil. A medida é de um racismo evidente. E por que não a História de Portugal e a luta dos portugueses no Brasil? Ou a história da Itália e as lutas dos italianos? Ou a história do Japão e a luta dos japoneses? O Brasil é um cadinho de culturas e a contribuição africana a seu desenvolvimento está longe de ser a única ou a mais importante. O estudo da história afro-brasileira tem no entanto suas complicações.

Para os próceres do movimento negro, não basta historiar a cultura afro-brasileira. É preciso embelezá-la. É o que se deduz da proibição do livro Banzo, Tronco e Senzala, de Elzi Nascimento e Elzita Melo Quinta, na rede pública do Distrito Federal por ordem do governador Joaquim Roriz, em acatamento ao pedido do senador petista Paulo Paim. Um garoto teria ficado impressionado com as informações contidas no livro dizendo que os "negros perdiam a condição humana assim que eram aprisionados na África para se tornarem simples mercadoria à disposição dos brancos" e que aprisionar os negros não era difícil. "Principalmente, depois que os traficantes passaram a contar com o auxílio de negros traidores que prendiam elementos de sua própria raça em troca de fumo, cachaça, pólvora e armas."

"Qual é a auto-estima de uma criança negra quando recebe um livro que diz que, se seu povo um dia foi escravo, os culpados foram os negros, e não os europeus da época, mercadores de escravos?" - pergunta Paim. O deputado parece ignorar - ou propositadamente omite - o fato de que a escravidão não é invenção dos europeus. Ela já está na Bíblia e em momento algum é condenada pelos profetas ou patriarcas. Nem mesmo Paulo, reformador do Livro Antigo, a condena. Foi norma na Grécia antes de a Europa existir. Séculos antes de o primeiro navio negreiro europeu aportar no continente africano, ela lá já existia, sem a interferência do Ocidente. O presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, que o diga. Comentando as reivindicações dos movimentos negros, identificou-se como descendente de uma rica família de senhores de escravos e perguntou se alguém iria pedir-lhe indenização. Ainda bem que não o fez em jornais do Distrito Federal, ou seria censurado pelo governador Joaquim Roriz.

Que os chefes tribais negros facilitavam a tarefa dos negreiros, vendendo escravos de outras tribos, isto tampouco é ignorado. Vendiam e continuam vendendo até hoje, em pleno século XXI. Na Mauritânia, Sudão e Gana, no Benin, Burkina Fasso, Mali e Niger, a escravidão ainda persiste como nos tempos dos navios negreiros. Ano passado, a GNT mostrava brancos europeus comprando escravos no Sudão. Não que fossem negreiros. Eram representantes de Ongs européias, que compravam negros para libertá-los. O propósito pode ser nobre. Mas toda procura gera oferta e os dólares dos ongueiros só serviram para estimular o tráfico de escravos. Esta é a história da África. E se algum autor relega a escravidão para tempos passados, o livro está desatualizado.

A nova lei assinada pelo presidente da República acrescenta ao calendário escolar o dia da morte de Zumbi (20 de novembro) como o Dia Nacional da Consciência Negra. Esta ambição patrioteira de ter heróis, típica de países subdesenvolvidos, levou políticos negros a elegeram Zumbi como herói da raça. Ora, é sabido que os quilombos faziam escravos brancos. Como é que ficamos? Irão as autoridades censurar qualquer livro que ateste esta condição de escravagista de Zumbi?

Ao defender os sistemas de cotas na universidade, os negros caíram em uma tosca armadilha. Podem hoje ter facilidades na obtenção de um diploma. Mas quem, amanhã, irá contratar os serviços de profissional que entrou na universidade pela porta dos fundos? Ao exigir a inclusão da história africana nos currículos, caíram em armadilha mais sofisticada. A história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Democracia, direitos humanos, liberdade de imprensa, emancipação da mulher, são instituições desconhecidas no continente. Seis mil meninas têm o clitóris extirpado, diariamente, em vinte países do Oriente Médio e da África. Por barbeiros locais ou parteiras, com instrumentos não esterilizados.

A África, até hoje, está mais para Idi Amin Dada do que para Mozart. Mais para Bokassa que para Einstein. Estudar sua história, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma auto-estima.



SOBRE IDI AMIN DADA E MOZART


Em crônica passada, comentei o sistema de cotas para negros na universidade e o estudo obrigatório da História africana nas escolas brasileiras. O artigo rendeu uma saraivada de mensagens, em geral iradas, nas quais invariavelmente sou acusado de racista. “A doença do racismo é uma invenção européia” – escreve um dos leitores – “Você não pode infetar uma pessoa com a doença sem esperar ficar doente. Seu artigo mostra a doença que você ainda tem”. Tantas foram as objeções, que responder a todas é impossível. Atenho-me então a comentar os pontos mais recorrentes, como racismo, sistema de cotas, escravidão e história da África. Deixo de lado minha surpresa ao tomar conhecimento de que os hutus e tutsis que se cortam aos pedaços em Ruanda estão contaminados por uma invenção européia.

Comecemos por meu suposto racismo. Nasci no Rio Grande do Sul, Estado que, por sua forte colonização européia, tem a fama de ser o Estado mais racista do Brasil. Apesar de ser constituído por uma expressiva maioria branca, foi o primeiro Estado do país a eleger um governador negro, Alceu Collares. Ora, nem a Bahia, Estado majoritariamente negro, teve um governador negro. Collares não só foi governador, como também prefeito de Porto Alegre, capital também majoritariamente branca. Antes de ser prefeito da capital gaúcha, foi prefeito de Bagé, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, onde os brancos constituem maioria esmagadora.

Desde minha infância, de meus estudos primários aos universitários, convivi afavelmente com negros. Em meus anos de Porto Alegre, por noites a fio participei da mesa de Lupicínio Rodrigues, no bar da Adelaide, e por ele sempre nutri admiração. Lupicínio – que compôs os mais belas letras de samba do Brasil – era universalmente querido pelos gaúchos. Hoje, noto que tive entre os negros bons amigos. E por que hoje? Porque na época nem notava que eram negros. Com o acirramento recente da luta racial, passamos a conviver com pessoas que insistem em se definir como negras, quando nem cogitávamos de que o fossem.

Entre os mails recebidos, sou acusado de defender a tese de que no Brasil não existe racismo. De certa forma, a defendo. Algum racismo existe entre nós, ou humanos não seríamos. Mas jamais ao nível dos EUA ou países europeus. O negro, quando rico ou bem-sucedido, é estimado e mesmo invejado no Brasil. Milhões de brancos brasileiros se sentiriam sumamente honrados sendo fotografados junto a um Pelé. O rechaço existe em relação ao negro pobre ou miserável. Neste caso, o fator de distanciamento não é a negritude do negro, mas sua miséria. Exceto padres católicos e assistentes sociais, ninguém gosta de miséria. Nem negro gosta de negro pobre.

Nunca tivemos, no Brasil, leis proibindo a negros qualquer direito. As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça. No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos. No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa.

Brasileiros, desconhecemos este racismo institucionalizado. Negros e brancos casam-se com brancas e negras, bebem e comem nos mesmos restaurantes, estudam e confraternizam nos mesmos bancos escolares. Se há menos negros que brancos na universidade, isto se deve a fatores econômicos, mas jamais legais. O branco pobre – e eles são legião – tem a mesma dificuldade de acesso aos bancos universitários que o negro pobre. O negro rico – e eles também existem – tem a mesma facilidade de acesso que o branco rico. É inteligível o ódio que um negro americano possa sentir por um branco americano. Não há no entanto razão alguma para que este ódio seja exportado ao Brasil. Neste país, do ponto de vista legal, o negro nunca foi discriminado.

O Brasil costuma importar as piores práticas do Primeiro Mundo, costumo afirmar. No censo de 2.000, quase sete milhões de norte-americanos, pela primeira vez, foram autorizados a identificar-se como integrantes de mais de uma raça. As categorias inter-raciais mais comuns citadas foram branco e negro, branco e asiático, branco e indígena americano ou nativo do Alasca e branco e "alguma outra raça". Os Estados Unidos deixam de lado a one drop rule, pela qual um cidadão é considerado negro mesmo que tenha uma única gota de sangue negro em sua ascendência, e descobrem o mestiço.

Enquanto os Estados Unidos reconhecem a multi-racialidade, alguns movimentos negros no Brasil pretenderam que até os mulatos se declarassem negros no último censo. O propósito é óbvio, exercer pressão legislativa. A população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. O presidente José Inácio Lula da Silva, em sua já proverbial incultura, caiu nesta armadilha, ao afirmar que o Brasil é a segunda nação negra do mundo. Não é. Negro é minoria ínfima no Brasil. A menos que, como fizeram os EUA, se pretenda negar este espécime híbrido, o mulato.

Quando os americanos descobrem o mestiço, os ativistas negros brasileiros querem eliminá-lo do panorama nacional. Em uma imitação servil da imprensa ianque, os jornais tupiniquins passam a usar o termo afrodescendente para definir a população que o IBGE classifica como negra ou parda. Mas se um negro é obviamente afrodescendente, o pardo é tanto afro como eurodescendente. A adotar-se a nova nomenclatura, sou forçado a declarar-me eurodescendente. E não vejo nisso nenhum desdouro.

A palavra racismo, pouco freqüente na imprensa brasileira em décadas passadas, passou a inundar as páginas dos jornais a partir da queda do Muro de Berlim. Apparatchiks saudosos da Guerra Fria, vendo desmoralizadas suas bandeiras de luta de classes, proletariado versus burguesia, trabalho versus capital, trataram logo de encontrar uma nova dicotomia, para lançar irmãos contra irmãos. Existem negros e brancos no Brasil? Maravilha. Vamos então lançá-los em luta fratricida. Criaram-se leis absurdas que, a pretexto de combater o racismo, só servem para estimulá-lo. Hoje, no Brasil, se você insultar um negro, incorre em crime com prisão firme e sem direito à fiança. Mas se matar um negro, a lei é mais leniente. Se você for primário, pode responder ao processo em liberdade. Ou seja: se você, em um momento de ira, insultou um negro e quer escapar de uma prisão imediata, só lhe resta uma saída: mate-o. Segundo a lei absurda, assassinato é menos grave que ofensa verbal.

Vamos às cotas. Em virtude deste hábito nosso de importar do Primeiro Mundo seus piores achados, acabamos instituindo as cotas raciais na universidade. Mais uma dessas tantas leis que fabricam racismo. Como pode um jovem pobre e branco encarar sem animosidade um negro que lhe tomou a vaga na universidade, só porque é negro? Quando o juiz federal Bernard Friedman determinou o fim da política de ação afirmativa da faculdade de Direito da Universidade de Michigan, os americanos começaram a perceber que a política de cotas era uma péssima idéia. Em 1977, a estudante branca Barbara Grutter abriu processo depois de não ter sido aceita pela faculdade de Direito. Para Friedman, levar em consideração a raça dos estudantes como fator para decidir se os aceita ou não é inconstitucional. Segundo o juiz, a política de ação afirmativa da faculdade assemelha-se ao sistema de cotas, que determina que uma certa porcentagem de estudantes pertença a grupos minoritários. Ao ordenar que a faculdade deixe de praticar essa política, escreveu: “Aproximadamente 10% das vagas em cada turma são reservadas para membros de uma raça específica, e essas vagas são retiradas da competição”.

Ano passado, o programa 60 Minutes entrevistou um professor que mostrava a injustiça do sistema. De 51 estudantes brancos candidatos a um programa da faculdade, apenas um foi aceito. Entre dez candidatos negros, foram aceitos os dez. A universidade adota uma espécie de lei Jim Crow às avessas, aceitando qualquer candidato negro e recusando brancos. Quando os americanos descobrem que a política de afirmação positiva não constituiu uma idéia boa ou justa, autoridades brasileiras aderem a esta política infame. Já existe projeto, aprovado Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal, segundo o qual deverão ser escalados 25% de atores negros ou mulatos em peças de teatro, filmes e programas de televisão.

Só no teatro, o leitor já pode imaginar as peripécias de um diretor. Se pensa em encenar Ibsen ou Tchekhov, como inserir negros em contextos eslavos ou nórdicos? E se a peça tiver um só personagem? Pelo menos um quarto do monólogo terá de ser feito por um negro? Só mesmo no bestunto de um analfabeto poderia ocorrer esta pérola do politicamente correto. Quando os EUA passam a abandonar o sistema de cotas, deputados brasileiros querem adotá-lo até mesmo no universo do lazer.

Quando afirmei que negros capturavam negros na África, para vendê-los como escravos aos brancos europeus, não faltou interlocutor que alegasse que, se escravidão existia, é porque na Europa havia uma procura de escravos. Vários leitores jogaram sobre a Europa a pecha da escravidão. Tal atitude intelectual denota falta de leituras históricas. A escravidão é muito anterior à Europa. Ela já existe na Grécia socrática, quando Europa era apenas o nome de uma virgem raptada por Zeus, travestido em touro. Que mais não seja, a escravidão é vista como algo perfeitamente normal no livro que embasa o Ocidente.

Um leitor cita o Eclesiastes, quando Salomão fala de um homem que domina outro homem para arruiná-lo. Considera que esta declaração é universal, não se aplicando a uma raça, mas a todas as raças. E considera ser intelectualmente irresponsável invocar a Bíblia sem realçar este fato. O leitor esqueceu de ler o Êxodo:

“Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar. Se veio só, sozinho sairá; se era casado, com ele sairá a esposa. Se o seu senhor lhe der mulher, e esta der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do senhor, e ele sairá sozinho. Mas se o escravo disser: ‘eu amo a meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero ficar livre’, o seu senhor falo-á aproximar-se de Deus, e o fará encostar-se à porta e às ombreiras e lhe furará a orelha com uma sovela: e ele ficará seu escravo para sempre”. À semelhança de ativistas negros que não gostam de ouvir que chefes tribais africanos vendiam escravos aos brancos europeus, muitos católicos não gostam de ouvir que a Bíblia endossa a escravidão. Mas que se vai fazer? No Livro está escrito: “Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido. Mas, se sobreviver um ou dois, não será punido, porque é dinheiro seu”.

O Levítico legitima a aquisição de escravos estrangeiros: “Os servos e servas que tiverdes deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas. Também podeis adquiri-los dentre os filhos dos hóspedes que habitam entre vós, bem como das suas famílias que vivem conosco e que nasceram na vossa terra: serão vossa propriedade e deixá-los-eis como herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam como propriedade perpétua. Tê-los-eis como escravos; mas sobre os vossos irmãos, os filhos de Israel, pessoa alguma exercerá poder de domínio”.

Ou seja, não há originalidade alguma no fato de a Europa ter sido escravista. Estava apenas seguindo os ditames do livro que a embasa. A escravidão percorre o Livro de ponta a ponta, só não vê quem não quer ver. Portugal, país bom cristão, não deixaria de dar continuidade à tradição bíblica. Negros brasileiros exigem hoje indenizações milionárias da República, em nome da escravidão passada. Ocorre que o Brasil república não conheceu a instituição da escravatura. A Lei Áurea é de 1888 – coincidentemente da mesma época em que nos EUA vigiam as hediondas leis Jim Crow. A república foi proclamada em 1889. Se os negros querem indenização, a conta deve ser enviada a Portugal.

Existe hoje trabalho escravo no Brasil? Sim, existe. Mas nenhuma lei o legitima, pelo contrário. É crime e como tal é punido. Seria insensato de nossa parte negar a existência de nossas mazelas, em nome de um enjolivement da história pátria.

E aqui entramos no ponto que mais protestos provocou em meu artigo, a afirmação de que a história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Choveram e-mails citando feitos passados, antigas culturas e houve quem empunhasse o Egito como um dos expoentes da cultura negra. Não bastasse a tese furada de que Atenas era negra, vemos agora o Egito inserido no debate afro. De Dakar, um leitor me envia referências sobre Cheikh Anta Diop, estudioso senegalês que parte da idéia de que o antigo Egito faz parte da África negra.

Pode ser. Mas tal tese está longe de constituir unanimidade entre historiadores. Mesmo que assim fosse, de nada vale o argumento. Se um dia um hipotético Egito negro teve uma trajetória gloriosa, hoje não mais a tem. Essa trajetória foi em algum momento interrompida, e hoje o Egito vive a hora nada gloriosa do Islã. Que mais não seja, o antigo Egito era escravagista - os hebreus que o digam! - e isto tampouco depõe a favor da África.

Não faltou quem me acusasse de ser filho ingrato, afinal nossos ancestrais todos teriam surgido em solo africano. O argumento é contraproducente. Se todos de lá descendemos, foi preciso abandonar Mãe África para que o homem evoluísse. Que mais não seja, apegar-se a passados gloriosos de um país para alimentar auto-estima é doença de nacionalistas tacanhos. Pior ainda quando o apego é ao passado de uma etnia: estamos entrando na estreita fímbria que separa orgulho étnico de racismo. Antes de pertencermos a uma ou outra nação, a esta ou aquela etnia, pertencemos à raça humana.

Afirmei que estudar a história africana, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma auto-estima. Vejo que magoei muitos leitores. Inúmeros destes, munidos de um computador, enviaram suas mensagens por modem, em velocidade quase instantânea, via Internet. São pessoas alfabetizadas, o que neste nosso mundo já constitui privilégio. Em geral com curso superior, pelo que entendi. Usufruem das atuais facilidades de comunicação e da liberdade de expressão de pensamento nos países onde vivem. São nutridas por informação via satélite e podem acompanhar quase em tempo real os conflitos no planetinha, confortavelmente sentadas frente a um televisor. Certamente são usuárias de jatos e automóveis em seus deslocamentos, comem em bons restaurantes e foram formados em boas universidades. Ou seja, gozam do melhor do Ocidente.

Isto, caríssimos, não é herança africana. Que a África seja uma terna lembrança de um passado imemorial, vá lá. Hoje, não tem lição nenhuma a dar ao Ocidente. Quando na África existir eleições livres e democracia, noções de direitos humanos, imprensa e liberdade de imprensa, mulheres com os mesmos direitos que os homens, quando na África clitóris não mais sejam mutilados nem mulheres lapidadas, voltamos a conversar. A África trouxe contribuições à humanidade? Viva a África. O que não se pode, sob pena de falsificar a história, é ignorar suas mazelas presentes. Por enquanto, repito, a África está mais para Idi Amin Dada que para Mozart.

Quando alguém me fala da excelência de certas culturas primitivas, costumo lembrar de A Vida de Brian, dos Monty Python. Reunidos os conspiradores judeus, o líder pergunta: que nos trouxeram os romanos? Estradas, responde alguém. Certo. Mas além das estradas, que nos deram? Hospitais, responde outro. É! Mas que mais além das estradas e hospitais? Aquedutos, sugere um terceiro. E assim continua a discussão, até que sai um manifesto: apesar de nos terem trazido estradas, hospitais, aquedutos, escolas, esgotos, romanos go Rome!

Entendo o estudo da história como o estudo do acontecido. Não pode um historiador subtrair fatos só porque tais fatos são desonrosos à história de um povo. Durante todo um século – o passado – os comunistas construíram uma história fictícia para mostrar como paraíso o que em verdade era um inferno aqui na Terra mesmo. Não queiram os ativistas negros repetir esta infâmia. A do século passado ainda nos pesa e está longe de ser extirpada de nossa memória.



LUTA DE CLASSES MORTA, LUTA RACIAL POSTA



Em reposta a artigos que publiquei nesta revista (Brazzil), leio uma prolixa contestação de um acadêmico da Universidade de Michigan. Por apreço à síntese e ao leitor, tentarei ser breve. Não vou entrar na discussão de DNA ou fenótipos. Seria cair na armadilha da discussão sobre raça, conceito que até hoje não se conseguiu definir. Minha proposição inicial foi discutir racismo e leis que estimulam o racismo, o que é muito diferente. Se raça é algo impossível de determinar, racismo é algo muito palpável, e contamina tanto brancos como negros. Por um lado, a idéia de fenótipos é o caminho mais curto até sistemas como o nazista. Por outro, em nada me interessa que fenótipos portam as pessoas que me rodeiam. Tampouco vou responder, ponto a ponto, todas as objeções. Doze mil palavras é formato que não condiz com meu estilo. Vou me ater, nesta réplica, a alguns itens sobre este país em que nasci e vivo.

Mark Wells, militante da nova ideologia afrobrazilianista ianque, começa citando o doutor e sociológo Raimundo Nina Rodrigues: "the black race of Brazil... will always constitute one of the factors of our inferiority as a people”. Para começar, o tenho por etnológo e não sociólogo, mas isto é o de menos. Tal afirmação não corresponde ao que um brasileiro pensa sobre as populações negras no Brasil. Não tendo nunca os negros empunhado o poder político e administrativo da nação, jamais poderiam ter sido responsáveis por qualquer suposta inferioridade do país. Esta tese é de um racismo insólito, só concebível no bestunto de um acadêmico isolado em torre de marfim. O homem do povo, que vive e trabalha ombro a ombro com negros e mulatos, não pensa assim. Se inferioridade há, esta deve ser debitada aos brancos, que sempre tiveram o poder em mãos. Há quem afirme, isto sim, que nossas mazelas decorrem de termos sido colonizados por portugueses, e não por holandeses ou franceses. É possível. Mas história alternativa é disciplina espúria, que nada tem de rigor. Prefiro outra tese: nossas desgraças decorrem de termos sido colonizados por católicos. País protestante ou luterano, de modo geral, é sempre rico.

Cabe lembrar que Nina Rodrigues foi influenciado pelas idéias do conde de Gobineau, um dos precursores do racismo nazista, que esteve no Brasil entre 1869 e 1870. Este nobre francês aventou a exótica idéia de que a mistura de raças acabaria levando à pura e simples extinção da população brasileira. O médico baiano deixou-se deslumbrar pelo discurso da aristocracia gálica e considerou que toda e qualquer miscigenação resultaria inevitavelmente em desequilíbrio mental e degenerescência. Nina Rodrigues foi incumbido de analisar o crânio de Antônio Conselheiro. Considerou que, em se tratando de um mestiço, o morto era muito suspeito de ser degenerado. Você não pode, de forma alguma, Mr. Wells, interpretar a realidade brasileira a partir de considerações de um pensador racista influenciado por um precursor do nazismo. Seria como pedir a Hitler um parecer sobre a questão judia.

Mr. Wells afirma, citando pesquisa da Fapesp, que “the term pardo was developed as a way for the Brazilian government to hide the fact that it had such a high proportion of African descent people”. A afirmação é vaga. Qual governo? Em que época? Quais documentos baseiam tal afirmação? O autor da pesquisa citada não fornece nenhuma base documental à sua tese. É uma afirmação apoiada no vazio, o que depõe contra as qualificações acadêmicas exibidas pelo articulista. Pardo ou mulato quer dizer a mesma coisa e mulato é palavra antiga. Se você apanhar um Larousse, lá está: “Mulâtre, mulâtresse: homme ou femme de couleur, nés d'un d'un Noir et d'une Blanche”. A palavra vem do espanhol e data de 1544. Vamos ao dicionário de Maria Moliner: “se aplica al mestizo hijo de blanco y negro”. A distinção entre negro e mestiço não foi criada por governo brasileiro algum. Ela já existia há séculos em outras culturas.

Machado de Assis, o patrono da literatura brasileira, sempre foi considerado mulato. Estamos no século XIX. Os historiadores da literatura não o situam como negro, por uma simples razão: não era negro. É salutar que esta distinção seja feita, pois a fenômenos diferentes cabem denominações diferentes. Mesmo mulato, Machado conquistou a admiração da intelectualidade branca e universitária, como também um outro seu coetâneo, Lima Barreto. Estranho país racista este nosso, onde o vulto maior da Letras nacionais é um mulato.

Mr. Wells tem razão ao citar pesquisa do Censo mostrando que “the state of Bahia is approximately 25 percent white, 20 percent black and 55 percent mulato”. Folgo em saber que, pelo menos para efeito de argumentação, você aceita as definições do censo. Penintencio-me por ter afirmado “a definite black majority”. Seria mais preciso se dissesse “uma maioria de pretos e mulatos”. Mas isto não muda em nada o mérito da questão. O que afirmei é que o Estado da Bahia jamais fez um governador negro. Mesmo com o mais alto percentual de negros do país, com o mais alto contingente de negros e mulatos somados e com uma minoria de 25% de brancos. Ou seja, o eleitorado baiano é composto por três quartos de eleitores de cor. Porque só elege brancos? Para ativistas que tudo vêem sob a ótica do racismo, a resposta é constrangedora. Teriam pretos e mulatos preconceitos contra candidatos pretos e mulatos? Aliás, esta parece ser a característica fundamental dos negros que fizeram sucesso no futebol brasileiro. Tão logo se tornam ricos, escolhem loiras como suas mulheres.

Já no Rio Grande do Sul, Estado majoritariamente branco, tivemos o negro Alceu Collares eleito governador, em 1990. Você afirma: “It's also funny that you should mention Alceu Collares being elected governor. In 1993, in Vitória, state of Espírito Santo, a 19-year old black female college student named Ana Flávia Peçanha de Azeredo was assaulted and punched in the face by a 40-year old white woman and her 18-year old son over the use of an elevator in an apartment complex”. Ora, você não pode comparar um fait divers da crônica policial com a vontade de um eleitorado de nove milhões de habitantes (na época). Pesquisando melhor, é possível que você encontre mais casos semelhantes. Digamos que encontre dez, ou mesmo vinte. Não podem ser comparados à vontade de uma população de nove milhões, que tinha de escolher entre um candidato negro e dois outros brancos, e escolheu o negro. Collares, diga-se de passagem, tão logo tornou-se governador, teve a mesma atitude dos atletas negros. Trocou a fiel e negra Antônia que o acompanhara nos anos de vacas magras por uma loiríssima secretária.

“In Brazil, still today, maids must use the back service elevator while residents use public elevators”. Sua afirmação parece provir de quem conhece extensivamente o país todo, e não a de um pesquisador que esteve onze semanas na Bahia. Tivesse saído do gueto, veria por exemplo, que em todos os elevadores de São Paulo está afixada a transcrição de uma lei: "É vedado, sob pena de multa, qualquer discriminação em virtude de raça, sexo, cor, origem, condição social, porte ou presença de deficiência física e doença não contagiosa por contato social no acesso aos elevadores”. Você não encontrou este aviso na Bahia? Se não encontrou, é porque a Bahia, com seus 75 % de negros e mulatos, está ainda muito atrasada em matérias de leis contra a discriminação.

“With this in mind, let us also remember this when we walk the streets of Bahia (a 75 percent black state) and never see a black face on the cover of a magazine (except for Raça Brasil) or rarely see a black face on Brazilian television (except as criminals, maids, pagodeiros, futebol players). Com esta afirmação, você confirma minha antiga suspeita que a Bahia é um Estado onde o negro é racista em relação ao negro. Venha a São Paulo, onde a proporção negra é bem menor, e verá negros e negras como âncoras de televisão, animadores de programas, repórteres, redatores e colunistas em jornais. São Paulo, com seus mais de dez milhões de habitantes, é, ao lado do México, uma das maiores metrópoles latino-americanas. Ainda recentemente, teve como prefeito Celso Pitta, cidadão negro eleito em concorrência a candidatos brancos. Saiu do governo com a pecha de corrupto, mas isto é outra história. Mais recentemente, tivemos uma governadora negra no Rio, hoje ministra em Brasília *.

Você não pode afirmar, de forma alguma, que a televisão brasileira só mostra faces pretas quando se trata de “criminals, maids, pagodeiros, futebol players”. Ano passado, eu participava de uma festa em um condomínio de luxo (essas cidadelas fortificadas onde ricos – sejam brancos, sejam negros – se protegem da violência que toma conta do país) e, em dado momento, vi os participantes todos da festa, brancos e negros, se apertando para sair na foto junto a um negro. Como quase não assisto a televisão nacional, não imaginava de quem se tratasse. Soube mais tarde que era Nettinho, um dos mais famosos apresentadores do país.

Mas você ainda afirma: “It is truly a shame that in the year 2003 people continue to use Brazilian entertainers and athletes such as Pelé to try and down play the effects of racism in society. Many people use this same logic in the US. Just because you allow a black person to entertain you doesn't necessarily mean you would like for a person who looks like them to be your neighbor, marry your daughter or be president of your country”. Pode ser que assim seja nos Estados Unidos. Aqui, não. Os negros estão representados na Câmara de Deputados e no Senado, nas Câmaras de Vereadores e nos Ministérios, na magistratura, na universidade e na imprensa. Constituem minoria? É porque não contam sequer com o voto do grande contingente negro e mulato do país, pois neste país as eleições são livres e negros e mulatos votam. E até é bom que assim seja. A maior desgraça com que poderíamos ser brindados seria ter partidos baseados em raça. A idéia de que negro só vota em negro já roçou as mentes tupiniquins. Por enquanto, pelo menos, esta semente de nazismo foi esconjurada.

E os negros são nossos vizinhos e casam com nossas filhas, sim senhor! Ou não teríamos um população de quase 40% de mestiços. Há famílias que têm restrições a casamentos interraciais? E por que não? Alguma lei proíbe que uma família tenha preferências em relação a seus filhos? De qualquer forma, não vivemos em um país feudal, onde a vontade soberana do pater familias determina o destino dos filhos. Quanto a ser presidente da República, nada impede um negro de candidatar-se à suprema magistratura e tenho a firme convicção de que, mais dia menos dia, teremos um presidente negro. A este operário branco de extrema incultura que o país hoje elegeu, eu me sentiria muito melhor servido por um presidente negro que tivesse maiores luzes e experiência administrativa. A cor do presidente não me interessa. Interessa-me sua competência.

Você cita a participação de João Batista de Lacerda, em 1911, no I Congresso Universal das Raças, em Londres. Segundo o médico brasileiro, em um século de miscigenação, “black people would ultimately disappear from Brazilian society”. Sabemos que Lacerda ilustrou sua tese com o quadro A redenção de Can, de Modesto Brocos y Gomes, que pretendia registrar esse branqueamento mostrando como o cruzamento dos negros e seus mestiços com brancos diluía o sangue africano, gerando descendentes claros. Pela denominação do Congresso, você já pode deduzir que se vivia uma época em que o conceito de raça gozava de estatuto científico, o que hoje não mais se admite. No quadro de Brocos y Gomes, havia uma negra velha em gesto de preito, ao lado de uma mulata clara, mais um homem de traços ibéricos e uma criança, supostamente filha do casal, de pele clara, mostrando a progressão do negro ao branco. Ora, a obra de um pintor não pode ser fundamentação para quem pretende demonstrar uma tese na área de genética.

Citar Lacerda é o mesmo que citar o protonazista Nina Rodrigues. Se Gobineau – o guru de Nina Rodrigues – afirmava que a mistura de raças acabaria levando à pura e simples extinção da população brasileira, Lacerda é mais modesto: será extinta apenas a população negra. Não podemos hoje, em pleno século XXI, dar ouvidos a teorias desvairadas do século XIX, que aliás se revelaram em contramão da realidade. Ao afirmar que “Brazil's leaders chose to try and mix the African blood right out of the country” você está aceitando teorias conspiratórias que jamais existiram, exceto talvez na cabeça de algum racista – e estes sim existem. Mas nada, em sã consciência, autoriza alguém a afirmar que sejam os líderes brasileiros os responsáveis por esta teoria. Quem são esses líderes responsáveis por tão maquiavélica estratégia? Eu os desconheço. Quem defendeu quase histericamente a miscigenação, nos últimos anos, foi Darcy Ribeiro. Mas em defesa da negritude e não como instrumento de extinção do negro.

Em O Presidente Negro (1926), Monteiro Lobato, ciente das teses de Nina Rodrigues e Batista Lacerda, satiriza uma cientista americana, Miss Jane, que afirma ser o ódio a mais profunda das profilaxias. Impede que uma raça se desnature, descristalize a outra e conserva ambas em um estado de relativa pureza. “O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”. Não por acaso, o autor coloca na boca de uma norte-americana esta tese estapafúrdia. Brasileiros, dispensamos este ódio purificador.

Mr. Wells diz ter visto uma única vez uma mulher negra ser coroada Miss Brasil, Deise Nunes de Souza, em 1986. Ocorre que o Brasil não existe a partir de 1986. Em 1964, a carioca Vera Lúcia Couto dos Santos foi a primeira negra a ser eleita Miss Brasil. Verdade que foi bombardeada com telefonemas anônimos, alegando que uma preta não poderia ser Miss Brasil. Isso no Rio de Janeiro, Estado também de predominância negra e mulata. Mas foi eleita e eleita permaneceu. Cabe lembrar que Deise Nunes é gaúcha, pertence àquele mesmo Estado de maioria branca que elegeu Alceu Collares. E cabe ainda lembrar um episódio de flagrante racismo de parte da comunidade negra de Porto Alegre, ocorrido nos anos 80. Porto Alegre elegeu uma rainha do carnaval ... branca, para sua infelicidade. Os movimentos negros protestaram, alegando que o carnaval era uma festa negra e a rainha, portanto, tinha de ser negra. As pressões, que incluíram inclusive apedrejamento à casa da moça, foram tantas, que ela teve de renunciar ao cetro. Curiosamente, ninguém lembrou na época que o carnaval, em suas origens, nada tem a ver com negros ou África. É uma festa branca e romana.

“In several books about Brazil, it has been reported that Afro-Brazilians were barred from entering prestigious social clubs even when they had the money for the special membership fees”. A afirmativa merece algumas observações. Existiram clubes no Brasil, exclusivamente de negros ou brancos. Se nos clubes de brancos negro não entrava, a recíproca era verdadeira: no de negros, branco não entra. Desses clubes, o que hoje mais se destaca, é o bloco Ilê Aiyê, na Bahia, fundado em 1974, e que até hoje não admite brancos entre seus membros. Que mais não seja, clubes são entidades privadas, onde pessoas se reúnem com as pessoas que gostam de reunir-se. Se britânicos gostam de reunir-se entre britânicos, se homossexuais gostam de reunir-se entre homossexuais, não vamos condená-los por isso. Condenável seria, isto sim, barrar pessoas em lugares públicos por uma questão de cor.

A propósito, você afirma: “In the Frances Twine book, we find that black people were often times not allowed to walk on certain sides of the street!” Ora, Twine viveu apenas onze meses em uma pequena comunidade fluminense. (Melhor que onze semanas, é verdade, mesmo assim pouco concludente). Extrair conclusões genéricas a partir de tão curto período em uma comunidade isolada é confundir o universo com o círculo-de-dois-metros-de-diâmetro-em-torno-ao-próprio-nariz. Se por ventura em alguma época isso existiu naquela comunidade, não pode ser estendido ao Brasil, onde negros e brancos andam por onde bem entendem. Nada nem ninguém obriga, hoje, um negro a andar por este ou aquele lado da calçada. Não podemos julgar o Brasil contemporâneo a partir de hipotéticos fatos isolados de comunidades perdidas na geografia. Certos grupos, no Rio de Janeiro, costumam aplaudir o pôr-do-sol. Nem por isso vamos afirmar que no Brasil costuma-se aplaudir o pôr-do-sol. O que existe hoje são territórios inteiros onde nem negro nem branco pode entrar. São as reservas indígenas.

Os afrobrazilianistas têm produzido não poucos ensaios, onde o não-branco é automaticamente identificado com o negro. Na recente enxurrada de estudos acadêmicos sobre o Brasil, publicados nos Estados Unidos, talvez o historiador Jeffrey Lesser seja o único a ter uma visão abrangente e não racista da questão. Em Negotiating National Identity: Immigrants, Minorities and the Struggle for Ethnicity in Brazil, Lesser procura mostrar como outros grupos imigrantes não-brancos, em especial japoneses e árabes, participaram da construção de uma identidade brasileira. Segundo o viés racista dos afrobrazilianistas, o universo parece ter apenas duas cores, branco e preto.

Não procedem as afirmações de Mr. Wells de que ninguém tenha sido punido por racismo no Brasil. “How many white Brazilians do you know (and can prove) have been actually thrown in jail for racist practices? Most likely NONE! And as far as murder, I can relay several stories I have been told in which a black Brazilian was killed and absolutely NOTHING was done about it!” Você não pode citar um, ou três ou quatro casos como regra geral. Para começar, aqui em São Paulo (falo apenas da cidade de São Paulo), a cada fim-de-semana, são assassinadas entre 50 e 60 pessoas, entre brancos e negros, e assassino algum é punido. Há hoje, só no Estado de São Paulo, nada menos que 127 mil mandados de prisão a cumprir. Que não são cumpridos porque não há vagas nas penitenciárias. Ou seja, há 127 mil condenados – ou pelo menos indiciados – livres como passarinhos. Neste número não estão incluídos as dezenas de milhares de autores de crimes não elucidados. Impunidade não é característica de assassinos de negros, mas prática amplamente disseminada no Brasil.

Quanto a delitos raciais, uma rápida pesquisa nos jornais nos mostra casos interessantes. O Tribunal de Alçada de Minas Gerais, por exemplo, condenou uma senhora a indenizar seu vizinho em R$ 5.000,00, a titulo de danos morais. A referida senhora havia chamado seu vizinho, publicamente, de "macaco", "nego fedorento" e "urubu", ferindo a moral do ofendido. No Rio de Janeiro, o juiz da 7a. Vara Criminal condenou a dois anos de detenção, com sursis, uma empresária que teria se referido a uma candidata a emprego como "negrinha maltrapilha e sem modos”. O juiz da Infância e Adolescência de Florianópolis condenou menor que, em um jogo de futebol na escola, chamou o colega de "negro feio". O menor foi condenado a seis meses de liberdade assistida. São punições pesadas para uma ofensa verbal, que jamais seria punida se dirigida a um branco.

Enquanto isso, um cantor popular fez sucesso nacional no rádio e televisão com uma música intitulada Lôra Burra. Nenhum processo, nenhuma acusação de racismo, nenhuma condenação. Imagine, Mr. Wells, se alguém intitulasse alguma canção de Nega Burra. Seria imediatamente processado. Foi o que aconteceu com o cantor Tiririca, acusado de crime de racismo por causa da música Veja os Cabelos Dela, que contém os versos “Essa nega fede / Fede de lascar”. Sobre o assunto, escreveu Henrique Cunha Júnior, professor titular da Universidade do Ceará: “se não bastassem os insultos e outros vexames impostos, temos ainda um boçal cantando no rádio que a nega fede, e nenhum dizer social de justiça ou de dignidade humana que proíba e puna este racismo”. O detalhe caricatural em tudo isto é que a música era dedicada à própria mulher do cantor, que nela não via intenção alguma de insulto, mas sim uma referência bem humorada.

O que venho afirmando, desde meu primeiro artigo, é que diplomas legais estão criando lutas raciais no Brasil. A lei nº 7.716, de 1989, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, está sendo brandida a torto e a direito não para dirimir, mas para acirrar conflitos. Há cinco anos, numa prova de língua portuguesa no vestibular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ocorreu um caso caricatural deste novo tipo de racismo. As frases "ela é bonita, mas é negra" e "embora negra, ela é bonita" provocaram indignação de entidades ligadas aos direitos dos negros no Estado. O Instituto e Casa de Cultura Afro-Brasileira (Icab) ingressou com representação criminal junto ao Ministério Público Federal e registrou queixa na Secretaria da Segurança Pública, pedindo que fosse apurada denúncia de crime de racismo por parte da UFMS. O grupo Trabalhos e Estudo Zumbi (Tez) pediu a anulação da questão e uma retratação pública da UFMS. Para Aparício Xavier, presidente do Icab, a questão era uma aberração, feita para a época medieval. "Se eu estivesse fazendo a prova, a rasgaria e botaria fogo."

A partir de duas frases, o candidato deveria indicar as respostas corretas. Uma das respostas considerada certa afirmava que na frase "a" ("Ela é bonita, mas é negra") a cor da moça era argumento desfavorável à sua beleza. Outra resposta considerada correta, na frase "b" ("Embora negra, ela é bonita"), dizia que a cor da moça era uma restrição superável pela beleza. Para o presidente da Comissão Permanente de Vestibular, responsável pela elaboração da prova, Odonias Silva, a questão foi "uma escorregada infeliz". O presidente do Icab pediu ao chefe do Departamento de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Ivair Augusto dos Santos, que oficializasse a indignação dos negros junto ao Grupo Interministerial da Presidência da República pela Valorização da População Negra, criado pelo presidente Fernando Henrique. Tanto o Icab como o Grupo Tez pediram uma indenização por danos morais. A nenhum representante de entidades ou professor ou reitor ocorreu lembrar que, se alguém quisesse queimar e rasgar a provas em razão da frase, teria de começar rasgando e queimando a Bíblia. Pois lá está, na abertura de seu mais belo livro, o Cântico dos Cânticos: “Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão”. Vamos à Vulgata Latina, tradução da qual deriva a maior parte das traduções atuais. Lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta - feita a partir do original hebraico - onde está, em grego: Melaina eimi kai kale.

Durante o governo passado, a Associação Brasileira de Negros Progressistas ingressou com uma representação ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a abertura de processo contra o ministro da Saúde, José Serra, por racismo. Questionava-se a escolha de uma atriz negra para a campanha de prevenção à Aids no carnaval, na qual a moça pede que seu último parceiro faça o teste de HIV. Para a entidade, a mulher negra foi ofendida ao ser exposta no anúncio como prostituta. O Ministério da Saúde reage: a atriz foi escolhida entre trinta candidatas, grupo que incluía louras, morenas e negras. Só teria ocorrido racismo se a melhor candidata não pudesse estrelar a campanha pelo fato de ser negra.

Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Não fosse a modelo negra a escolhida no concurso, este poderia ser contestado por dar preferência a brancas. Curiosamente, não ocorreu aos sedizentes negros progressistas perguntar o que achava do assunto a principal interessada, a atriz Carla Leite. Que de modo algum se sentiu inferiorizada. "Pelo contrário, tenho orgulho de ter passado uma mensagem importante, por mais que haja polêmica", disse Carla. Ao que tudo indica, não existe prostituta negra no Brasil. O diretor de Comunicação da Associação Brasileira de Negros Progressistas, Aguinaldo Triumpho Avellar, alega que os negros deveriam ser consultados sobre o teor do comercial. Assim, cada atriz negra que quiser trabalhar, terá de pedir prévia licença aos negros progressistas para saber se pode ou não candidatar-se a determinado papel.

Ainda em Florianópolis, aquela mesma cidade onde um menor foi condenado por chamar um colega de negro feio, ocorreu caso que bem demonstra o absurdo das leis anti-racismo. Uma trintena de funcionários foi demitida de uma empresa para-estatal. Um deles era negro. Entrou com ação por racismo. Foi reintegrado ao cargo e recebeu gorda indenização. Os demais funcionários, pela desgraça de serem brancos, ficaram a ver navios. Mas o caso mais caricatural desta histeria ocorreu em Brasília. Onde um negro já foi para a cadeia por ter chamado outro negro... de negro.

Como os conflitos raciais no Brasil jamais foram tão intensos como nos Estados Unidos, os sedizentes negros progressistas tupiniquins estão fazendo o que podem para que possamos atingir os invejáveis níveis de ódio racial de um país de Primeiro Mundo. Para isto, contam com o valioso apoio desta nova geração de ativistas formados nas universidades americanas nas últimas décadas. Em vez dos apparatchiks soviéticos, temos agora uma fábrica acadêmica de racismo, os centros de black studies. Com arrogância típica de cidadãos do império, os afrobrazilianistas ianques pretendem entender melhor o Brasil do que os próprios brasileiros.

O país está deslizando em um declive perigoso, criando leis diferentes para diferentes pessoas. Índios já gozam de um estatuto especial. Podem matar à vontade, como Raoni. Ou estuprar com gosto, como Paiakan. Não podem ir para a cadeia, são índios. Negro pode entrar na universidade passando na frente de brancos com melhor habilitação no vestibular. Podem também insultar brancos, isto não é crime. Crime é insultar negro. Luta de classes morta, luta racial posta. Parafraseando os marxistas: o ódio é o fórceps da História.

* Também acabou saindo do governo com a pecha de corrupta, mas isto também é outra história.

(março 2003)