¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 28, 2008
 
SOBRE ENTELÉQUIA E BORDÉIS



Tenho uma amiga em Porto Alegre que diz munir-se do Aurélio quando vai ler minhas crônicas. Ela exagera. Cá e lá, é verdade, puxo uma antiga palavra do baú, examino-a contra a luz, vejo se não está por demais gasta e a jogo no texto. Vivemos uma época muito pobre intelectualmente. Os jornais já não se preocupam em expandir o vocabulário de seus leitores. Pelo contrário, reduzem a diversidade vocabular para adaptar-se ao leitor. Em meus dias de Folha de São Paulo, tive grandes discussões com colegas de redação. Não por usar palavras eruditas. Mas palavras banais, desconhecidas por gente mais jovem.

Já contei a história. Como contei há sete anos, vou contar de novo. Escrevendo sobre uma escaramuça qualquer no planeta, fiz uma manchetinha mais ou menos assim:

OBUS MATA UM E FERE TRÊS

Mal viu o título na rede, um jovem editor, desses formados em escola de jornalismo, pegou meu pé:

- Obus? O que é isso, Janer?

Obus, expliquei pacientemente, é uma peça pequena de artilharia, um tipo de morteiro. Também chama-se obus a granada ou bala lançada por esse morteiro.

- Ah, mas o leitor não vai entender. Ninguém sabe o que é obus.

Então tá. Eu só queria ver como ele encontraria palavra mais concisa que obus para dizer tiro de morteiro. Surgiu a turma do deixa-disso, entre eles um editor que fizera serviço militar. Sim, é isso mesmo, é obus. "Mas vocês fizeram serviço militar, disse o jovem. O leitor, nem sempre". O que, pelo menos no que a mim dizia respeito, era falso. Nunca fiz serviço militar. Quando guri eu fazia, isto sim, palavras cruzadas. Projétil de morteiro, quatro letras? Obus.

Meses mais tarde, novo conflito com os meninos hostis ao vernáculo. Me caíra nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei: EM SINAL DE PREITO. Mal o texto chegou em sua tela, o editor, sempre alerta, gritou de sua baia:

- Preito, Janer? O que é isso?

Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:

- Preito é isto.
- Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.

De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a imensa maioria das palavras que eu ou você usamos. Lembrei-me do obus e fui tomado de súbita iluminação. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.

Semana passada, puxei uma palavra de minha adolescência lá em Dom Pedrito. Escrevi que Jeová e Alonso Quijana participavam da mesma enteléquia. Um bom amigo gaúcho, o Marcelo Tostes, homem sempre atento às boas e velhas palavras, gostou do achado e me manifestou seu apreço. Já outros leitores manifestaram seu espanto e querem saber do que se trata. Mais intrigados ficarão ao tentar entender o que esta palavra fazia em Dom Pedrito. Mais ainda: embora a palavra nada tenha a ver com assunto, sempre a associo a bordel.

Ora, naquela cidadezinha havia uma excelente biblioteca na Prefeitura. E na biblioteca havia aquela bela coleção da Editora Globo, a Biblioteca dos Séculos, da qual constava desde Aristóteles e Platão a Balzac e Montaigne. Foram livros que devorei, ainda jovem, como uma formiga faminta de folhas verdes. O conceito de enteléquia surge em Platão e é desenvolvido por Aristóteles. Durante muitas noites as profissionais da cidade bocejaram nos bordéis ouvindo nossas discussões sobre enteléquia. É que nossas mães não gostavam de nos ver lendo filosofia (eram os dias pós 64) e proibiam nossas reuniões em casa. Nos refugiávamos então nos raros bares da cidade. Ou melhor, no único, o bar do Santinho. Mas o Santinho fechava cedo e o minuano batia com força na praça General Osório. O remédio era abrigar-se nos bordéis.

Vamos à palavrinha. Platão dizia que a alma possui enteléquia ou movimento contínuo e se supõe que Aristóteles alterou o vocábulo platônico para diferenciar sua doutrina da de Platão. Mas o emprega com ambigüidade. Alguns autores a traduzem como “o fato de ter perfeição”. Outros usam a forma adjetiva como sinônimo de perfeito. Em De Anima, Aristóteles talvez defina melhor a palavra: se o corpo é a matéria, a alma é uma certa forma. “A alma é a primeira enteléquia do corpo físico orgânico, que possui a vida em potência” – diz o estagirita.

A palavra fez carreira no tempo e no espaço, e nenhuma mudança de língua ou geografia permanece impune. Segundo Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia, na época moderna a noção de enteléquia foi deixada de lado. Plotino, por exemplo, afirma que a alma não é como uma enteléquia, pois a alma não seria separável do corpo. Para Mora, a palavra assumiu inclusive um sentido pejorativo de algo “não-existente”, que ainda conserva na linguagem comum.

A discussão vai bem mais longe. Em todo caso, eu queria dizer que Jeová e o Quixote possuem a mesma natureza. Ou seja, são entes de imaginação.