¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quinta-feira, janeiro 31, 2008
 
SOBRE MINHAS VIAGENS



Um menino que nada entende de jornalismo está preocupado em saber como custeio “viajens (sic!) à Europa, vinhos e restaurantes, foie gras, prostitutas” e meu ego. Bom, ego não custa caro. Quanto ao mais, já ouvi várias teorias ao longo de minha vida. No final dos anos 60, em meus dias de universidade, pelo simples fato de não ser comunista, considerava-se que eu era pago pelo DOPS. Se as jovens gerações já não lembram o que quer dizer, explico: Departamento de Ordem Política e Social, organismo do governo criado durante o Estado Novo, cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.

Comecei então a trabalhar em jornais. Fui imediatamente promovido ao SNI. Se as jovens gerações já não lembram, o Serviço Nacional de Informações foi criado pela lei nº 4.341 em 13 de junho de 1964, com o objetivo de supervisionar e coordenar as atividades de informações e contra-informações no Brasil e no Exterior. Um burguês reacionário que trabalhasse em jornal, naqueles dias, só podia ser agente do SNI. Eu, camponês e filho de camponeses, achava muito divertida a nova profissão que me fora atribuída.

Comecei a viajar. Já na primeira “viajem” – como escreve o menino analfabetinho – percorri a Europa de sul a norte e de leste a oeste. Era jovem, as geografias longínquas me fascinavam e 30 ou 40 horas de trem para mim constituíam lazer. Após um ano de Suécia, voltei para Porto Alegre. Recebi nova promoção. Trabalhava agora para a CIA. Mais ainda: minha missão seria vigiar os exilados brasileiros que planejavam a revolução latino-americana nos hotéis de luxo de Estocolmo e nos restaurantes caríssimos de Gamla Stan.

Que assim seja, pensei. Já que vivia de parcos recursos na Suécia – vinho só em fins de semana e olhe lá! – pelo menos curti o prestígio de espião internacional bem remunerado. A Guerra Fria acabou, tornou-se demodé pichar como agente da CIA quem não fosse comunista. Após toda uma trajetória como jornalista, escritor, tradutor e professor universitário, ainda há quem queira saber como vivo bem. Nesta altura dos acontecimentos, certamente sou financiado pelo Foro de São Paulo.

Nada mais prazeroso para um homem honrado do que falar de si mesmo – escreveu Dostoievski. Não vou perder a vaza. O leitor em questão parece ignorar que a forma mais prática de viajar sem ter muito dinheiro é exercer o jornalismo. Me formei em Direito e Filosofia. Se exercesse o Direito, teria boas chances de acumular bom capital. Mas seria prisioneiro da profissão. Certa vez, viajei um mês pelas ilhas gregas com uma advogada trabalhista gaúcha. Na volta ao sul, ela descobriu que seu sócio no escritório lhe havia roubado todas as causas e clientes. Teve de recomeçar de zero.

Optei pelo jornalismo pela possibilidade de exercer este ofício onde quer que se esteja. Graças à profissão, consegui bolsas e muitas viagens. Volto à minha primeira viagem. Foi em 71. Com minha companheira, percorremos a Europa de ponta a ponta durante dois meses. Irritado com o Brasil – não com a ditadura, mas com o país do carnaval e do futebol – decidi ficar em Estocolmo. Na época, não pretendia mais voltar a meu país. Dois livrinhos me mantiveram em pé no reino dos Sveas: as Poesias Completas, do Fernando Pessoa, e o Martín Fierro, do Hernández. Mas minha mulher era funcionária pública e não era sensato largar seu emprego. Apesar do afeto das suecas, muitas noites chorei, estático junto a uma janela, olhando aquele deserto branco e hibernal dos hiperbóreos. Um dia, um amigo boliviano me disse: Sos un boludo, che! Tienes en Brasil una mujer que te quiere. Que haces en esta tierra de hombres tristes?

Voltei. Foi certamente a decisão mais sensata de minha vida. Desempregado, estava me preparando para um concurso na Capitania dos Portos, para trabalhar como faroleiro no litoral brasileiro. Veleidade romântica minha, afinal eu jamais suportaria a vida de farol. Foi quando fui convidado a substituir Luís Fernando Verissimo na Folha da Manhã, em Porto Alegre. Após um ano de crônica diária, tive uma recaída de uma doença que geralmente acomete quem mora na Suécia, a resfeber. Em bom português, febre de viagens. Candidatei-me então a uma bolsa para um doutorado em Paris. Candidatei-me junto à embaixada francesa, não pela Capes ou CNPq, onde quem não tem pistolão não consegue nada. Não que estivesse interessado em doutorado ou vida acadêmica. Queria aqueles vinhos, queijos e mulheres só encontradiças às margens do Sena.

A bolsa me foi concedida sem que eu tivesse uma única carta de recomendação. Quando o cônsul telefonou-me para anunciá-la, disquei imediatamente para minha companheira. Eu, que sempre fora avesso ao casamento, perguntei à queima-roupa: “queres casar?” Perplexidade do outro lado da linha. “É que estou indo para Paris e quero te levar junto”. Envergonhado, casei meio às escondidas, num cartório ao lado de meu bar.

Às onze da manhã, eu bebia com o Carlos Coelho, excelente amigo e colunista da Zero Hora, na Rotisserie Pelotense. Deixei minha caipirinha pela metade e disse ao Coelho: “segura aí que vou comprar um jornal”. Entrei no cartório, onde já me esperavam familiares e testemunhas. Aí o juiz me fez uma pergunta idiota: você quer casar com esta mulher? Claro que queria, senão não estaria lá. Disse então aos circundantes: “vou comprar um jornal, me esperem na churrascaria aqui na frente”.

Voltei à Pelotense, terminei minha caipira com o Coelho, ele sequer imaginava que naqueles poucos minutos eu mudara de estado civil. Ocorre que Coelho, jornalista futriqueiro, tinha o detestável hábito de ler o Diário Oficial. Viu os proclamas e largou a história na imprensa. Viu os proclamas e largou a história na imprensa. Dia seguinte, tive de dar longa entrevista na Folha, tentando convencer minhas demais amadas que continuava sendo o mesmo homem solteiro de sempre. Não convenci muito.

Mas já estava com um pé em Paris.