¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 20, 2008
 
FOI-SE O DITADOR,
FICOU A DITADURA



À semelhança de Kim Il Sung, Castro inaugurou uma dinastia socialista na América Latina. É dogma que não admite contestação: o sucessor do tirano deve ser seu irmão. Leitores me pedem uma crônica sobre a renúncia do ditador. Ora, não há muito a comentar.

Cuba continuará sendo um país de partido único por mais algumas décadas. O aparelho comunista que detém os mecanismos do poder não vai aceitar largá-los. É possível que haja alguma liberalização da economia, mas certamente não será significativa. Os cubanos da ilha, anestesiados por meio século de tirania e pobreza, já nem devem ter lembrança do que seja democracia e prosperidade.

Se não há muito o que falar da renúncia de um tirano, há muito o que dizer do que dizem os jornais. A UOL, por exemplo, em reportagem de Murilo Caravello, mancheteava ontem:

Regime de Fidel cerceou democracia e direitos
humanos, mas melhorou qualidade de vida


Uma no prego e outra na ferradura. Diz o texto:

Em quase meio século como líder de Cuba, Fidel Castro escreveu uma história pontuada por grandes conquistas e perdas significativas. Se educação, saúde, redução de miséria e emprego são áreas em que é impressionante a evolução do país após a revolução, em categorias como direitos humanos, liberdade de expressão, democracia e acesso a bens de consumo Cuba consta como um contra-exemplo no cenário mundial.

Acontece que, no caso cubano, não dá pra dar uma no prego e outra na ferradura. Em 58, durante o regime de Fulgencio Batista, o PIB cubano era o dobro do mexicano. Hoje é um quinto. E ainda há que ouse falar nas excelências da educação e da saúde, na redução da miséria e do emprego. Não me venham falar de virtudes da educação em país que tem imprensa única e não permite a liberdade de opinião. Educação para quê? Para ler o Granma? Fossem os cubanos analfabetos, estariam mais bem servidos.

Melhoras na saúde? Como podem existir melhoras na saúde em um país que vive à beira da fome? Onde os gêneros alimentícios são racionados por uma libreta? Onde carne e pescados são reservados aos turistas que pagam em moeda forte? Já vi depoimentos de visitantes que viram maravilhas em um hospital em Cuba. É que são conduzidos a um hospital diplomático. Tive essa experiência em Praga, na então Tchecoeslováquia.

Tive um problema de menisco e não houve outro jeito senão buscar socorro médico. O hospital era um lixo. Passei a manhã toda tentando me fazer entender. Eu falava inglês, meus interlocutores até que entendiam. Mas me respondiam em tcheco. Finalmente descobri uma ala diplomática no hospital.

Fui até lá. Nossa! O panorama mudou. Muita limpeza, muita higiene, não vi mais gente deitada nos corredores. Me atendeu uma médica que fizera estágio em Cuba e falava espanhol. Bonitaça, ela aproximou seu rosto do meu, começou a queixar-se de sua vida, me confessou suas mais íntimas angústias. Eu, que não sabia se voltaria ao Brasil com uma perna ou duas, não percebi naquele momento que a moça estava me insinuando outros serviços que não os médicos. Por uns vinte dólares, eu talvez até tivesse esquecido o inchume de meu joelho. Seja como for, a ala diplomática era limpa e abordável. Com acesso ao serviço VIP da doutora. O mesmo acontece em Cuba.

Clóvis Rossi, o decano dos cronistas da Folha de São Paulo, faz hoje uma pergunta ingênua: “Resta-me uma perplexidade: como o líder de uma pequena ilha, praticante de um modelo que caiu em desuso, conseguiu manter-se, ainda assim, como um "pop star?"

Ora, Rossi tem idade suficiente para saber que o século XX foi o século do comunismo. Para boa parte do Ocidente, comunismo era sinal de redenção. Nem a denúncia dos massacres de Stalin nos anos 30, nem a denúncia de Kravchenko em 49, nem a denúncia de Kruschov no XX Congresso do PCUS conseguiram convencer o Ocidente de que a Rússia geria um regime tão cruel quanto o nazista. Quando Castro aderiu ao comunismo, sua imagem de pop star foi inaugurada.

Há histórias de Cuba que a imprensa não conta. Tenho um amigo em Paris que adora Cuba e vai para lá pelo menos uma vez por ano. Não que adore o regime. O que o fascina é sentir-se em um museu que mostra um tempo passado. Hospeda-se sempre com cubanos e tem uma boa idéia da vida na ilha. Contou-me esse amigo que, quando morre um cubano em Miami, seu cadáver é enviado para seus parentes em Cuba. A chegada do cadáver é uma festa. O caixão vem recheado de dólares, jóias, enlatados. Mal chega o cadáver, seus parentes se dedicam à garimpagem. Isto é Cuba.

A população da ilha, em 2006, era estimada em 11,3 milhões de habitantes. 1,1 milhão fugiram para Miami. Isto faz dez por cento da população do país. Ora, quando dez por cento da população de um país foge, é porque algo há de errado naquele país. Este contingente constitui a maior fonte de divisas de Cuba, chegando a enviar mais de um bilhão de dólares por ano, trazidos por “mulas” através do México. O turismo, que seria o grande captador de divisas, está em segundo lugar.

Uma das características da ditadura de Castro é que ela não se exerceu sobre Cuba, mas sobre toda a América Latina. Houve anos aqui no Brasil em que um jornalista se suicidava profissionalmente se escrevesse que Castro era ditador. Aconteceu comigo.

Anos 80. Eu lecionava em Santa Catarina. Um jornalista gaúcho, que estava organizando o lançamento do Diário Catarinense, convidou-me para escrever uma crônica para o número zero do jornal. Era uma espécie de teste para escolher o cronista. Escrevi duas. Em uma delas, eu dizia que as esquerdas deviam rezar pela saúde de Stroessner e Pinochet. Não que eu tivesse maior apreço por estes senhores. Ocorre que, uma vez mortos, Castro seria o último ditador do continente.

A crônica entrou nos computadores e provocou um motim na redação. Que eu não poderia ser o cronista do jornal, de forma alguma. Que até poderia ter razão. Mas que aquilo não podia ser publicado. O editor não ousou bancar meu nome.

E assim Fidel Castro Ruz, lá de sua distante ilha, roubou-me um emprego. Mas ninguém imagine que amanhã a ilha estará respirando liberdade. Foi-se um ditador. Ficou a ditadura.