¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, fevereiro 24, 2008
 
SOBRE MEU DOMINGO



Aos sábados e domingos, minha rotina começa em um dos botecos de meu bairro, o Prainha. Simpático, quase um clubinho, não tem nada demais. Mas sempre há um bom chope e uma boa caipira. Dedico uma ou duas horas à leitura de imprensa de fim de semana, que sempre é mais farta que a imprensa da semana. São os únicos dias em que uso celular. Permaneço em estado randômico, à espera de com quem vou almoçar.

Bueno, estava hoje eu em meu boteco, já havia lido o Estadão e começava a folhear a Veja, cuja capa é um dos grandes momentos do jornalismo nacional: sob a silhueta de Fidel, a manchete: JÁ VAI TARDE.

Tarde mesmo. Foi quando fui abordado por uma pesquisadora.
- Você leu o Estadão?
- Li.
- Achou eficaz a publicidade das casas Bahia?

Que casas Bahia? Eu não havia visto nada. Ela abriu meu jornal. Só no primeiro caderno havia cinco páginas com anúncios de cinco colunas das ditas casas. Juro: eu não havia visto nenhum.

- O que você achou do anúncio do novo Subaru?

Que Subaru? Alguma nova espécie de sanduíche? Seja como for, eu não achava nada porque nada havia visto. Ela abriu de novo o jornal. Havia anúncio de página inteira. Fiquei então sabendo que se tratava de um carro. Ela continuou me interrogando, entre outras coisas sobre a CVC, uma agência de turismo. Tinha anúncio de página inteira, mas eu também não o havia visto. Em todo caso, a CVC eu sabia o que era. Faz turismo de massa, junta em pacotes essa brasileirada infame com espírito de rebanho e os joga em cruzeiros animados pelo Roberto Carlos ou similares. Sim, a CVC eu conheço – respondi –. Tanto que jamais viajarei por ela.

Não vejo publicidade em jornais. Nem na Internet. Não é que não queira ver. É que não vejo mesmo. É como se os anúncios permanecessem em um ponto cego de minha visão. Todo o dinheiro que as empresas investem em publicidade, pelo menos no que a mim diz respeito, é dinheiro jogado fora. Par contre, certos pequenos detalhes de uma reportagem me atingem com força.

Por exemplo, um artigo de Sérgio Augusto sobre o Kosovo. Sempre leio todos os cronistas de um jornal, e particularmente os medíocres. Do Sérgio Augusto, sempre desconfiei de sua erudição arrogante. Como também sempre desconfiei dos jornalistas que assassinam ou mutilam o pronome reflexivo. Até já pensei em criar uma Associação de Defesa do Pronome Reflexivo. Lá pelas tantas, o articulista brande um estranho conceito, que jamais consegui entender, o conceito de albaneses étnicos. Ora, que pode ser um albanês étnico? Albanês não é uma nacionalidade? Nunca me constou que os albaneses constituíssem uma etnia. Mesmo se assim fosse, que distinguiria os tais de albaneses étnicos dos demais albaneses?

Desconfio que o articulista esteja pretendendo referir-se aos albaneses muçulmanos. O que ocorreu nos Bálcãs – e está ocorrendo agora no Kosovo – no fundo foi uma guerra entre católicos, católicos ortodoxos e muçulmanos. Em Mitrovica, o rio Ibar não separa exatamente sérvios e albaneses. Mas católicos ortodoxos e muçulmanos. Isso de albanês étnico é eufemismo ditado pelo políticamente correto.

Mas a máscara do erudito articulista cai mesmo é mais adiante. É quando escreve: “Meses depois, Gelbard confraternizava-se com líderes do Elk”. Ora, que uma cronista social escreva “confraternizava-se”, até que entendo. Cronistas sociais são uma praga do jornalismo e geralmente recrutados entre semi-analfabetos. Que um jovenzinho oriundo da ECA assim maltrate o pronome reflexivo, também entendo. Nos cursos de jornalismo hoje ideologia tem preponderância sobre a gramática. O que não se entende é como um velho jornalista – da época em que ainda se escrevia corretamente – grafe “confratenizava-se”.

Os anúncios de página inteira dos jornais, nem os enxergo. Mas uma flexão destas me fere na alma. Na página seguinte, numa reportagem de Flávia Guerra sobre uma escritora iraniana, esta barbaridade que aos céus clama justiça: “Ela devia usar roupas que jamais marcassem o quadril e o hijab (o véu sagrado que zela pelo recato das mulheres muçulmanas)”.

Sim, o hijab pode zelar pelo recato das mulheres muçulmanas. Mas das muçulmanas árabes. E Marjane Satrapi, a escritora em questão, é persa. Persas não usam hijab. Persas usam chador.

Fosse eu editor, jornalistas que grafam “confraternizava-se” ou que atribuem o hijab às iranianas, primeiro receberiam uma advertência. Em caso de reincidência, olho da rua.