¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, março 25, 2008
 
DÁ PRA VOLTAR


Leio nos jornais que, em 2006, 11,3 mil brasileiros foram mandados de volta do Reino Unido, uma média de 31 brasileiros por dia. Desse total, 4,9 mil foram barrados nas fronteiras e 6,3 mil, deportados. No mesmo ano, a Espanha impediu a entrada de cerca de 7,7 mil brasileiros. O cálculo foi feito segundo estimativa da polícia espanhola que indica que 40% dos 19,2 mil barrados no aeroporto de Barajas, a principal porta de entrada na Espanha, vêm do Brasil. A soma das estatísticas disponíveis em três dos principais destinos de brasileiros indica que pelo menos 21,9 mil foram expulsos do Reino Unido, da Espanha e dos Estados Unidos em 2006. A soma inclui barrados nas fronteiras e deportados após um período de ilegalidade.

Assim sendo, não é fácil entender a santa indignação que tomou conta das autoridades brasileiras, quando alguns gatos pingados brasileiros foram barrados no aeroporto de Barajas. Dona Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy Favre praticamente afirmou que todo brasileiro que vai à Espanha em busca de trabalho clandestino tem de ter respeitado seu direito – adquirido? – ao trabalho clandestino. Também afirmou – pelo que se pôde deduzir de suas sandices - que a Espanha não tem o direito de barrar os estrangeiros que não quer em seu território.

Eu também migrei um dia. Foi no início dos anos 70. Percorri toda a Europa e escolhi um país para ficar, a Suécia. Minha pretensão era não mais voltar. Eu não fugia exatamente da ditadura. Fugia, isto sim, do país do carnaval e do futebol. Havia um outro problema. No diário Associado em que trabalhava, como redator, ganhava apenas oito cruzeiros a mais que o contínuo. Certamente seria mais valorizado lá fora. Ocorre que meu instrumento de trabalho era a língua. Lá vivi um ano, aprendi a língua do país, mas não a ponto de usá-la com perfeição. Olhei, vi... e voltei. Voltei quando chegou a hora de lavar pratos. Nunca lavei pratos em minha casa, não iria lavá-los para suecos. Ganharia três ou quatro vezes mais que um jornalista no Brasil. Mas considerei que não havia nascido para lavar pratos.

Internationella diskare, era como eu os chamava em sueco: lavadores internacionais de pratos. Conforme a temporada, lavavam pratos ora na Escandinávia, ora na Alemanha, ora na França. Tinham contatos na Europa toda e conseguiam levantar uma boa grana no decorrer do ano. Conheci gaúchos de famílias ricas do Sul – um deles era Eberle – que trabalhavam 16 horas por dia em diskas (lavagem de pratos) no verão sueco, e com o ganho viviam o resto do ano nas Islas Baleares ou Canárias, na Espanha. É uma opção. Mas não era a minha.

Conheço de muito perto uma moça que por cinco meses trabalhou em Wisconsin como camareira. Ganhava bem e com o que ganhou atravessou os Estados Unidos de leste a oeste. Mas teve o bom senso de voltar. Hoje trabalha na revista mais importante do Brasil. Ganha menos do que quando arrumava camas nos States. Mas logo entendeu que arrumar camas ou lavar pratos não leva a nada. Essa moça é minha filha e creio que fez a boa opção. Arrumando camas ou lavando pratos, você pode até ganhar bem. Mas acabará convivendo apenas com pessoas que arrumam camas ou lavam pratos. Não é o melhor ambiente intelectual para quem quer entender o mundo e a vida. George Orwell viveu esta experiência e a relatou em Down and Out in Paris and London, quando trabalhou como plongeur. Se se contentasse com seus ganhos em trabalho servil, não teríamos 1984.

Ainda nos anos 70, hospedei-me certa vez no Grand Hotel Saint-Michel, na rue Cujas, em Paris, que de Grand só tinha o nome. Hotel de uma estrela, precário e desconfortável, era muito procurado por brasileiros. Era gerido por madame Salvage, que tive a suprema honra de conhecer. Segundo a lenda, teria sido a querida de Diego Rivera, Pablo Neruda e Jorge Amado. Entre outros. Certa noite, ao voltar, o porteiro noturno dormia num catre, na portaria do hotel. Acordou, ergueu-se aos poucos e me pareceu reconhecer aquela calva que se erguia na semi-escuridão. Era uma calva familiar, a de Gerd Bornheim, meu professor de filosofia durante quatro anos na Ufrgs, Porto Alegre.

Fiquei perplexo. Gerd havia sido compulsoriamente aposentado pela ditadura, em 1969. Mas não estava proibido de lecionar no Brasil. Muito menos estava ameaçado de prisão. Até hoje não consegui entender como um intelectual de seu porte – sem entrar no mérito do que pensava ou não pensava – conseguia submeter-se a ser porteiro noturno de um hotel mixuruca em Paris. Enfim, Gerd acabou voltando e passou a lecionar na Uferj.

Esta pobre gente, que foge do próprio país em busca de salário decente, eu os vi em Estocolmo, Berlim, Paris, Londres, Roma, Madri. Vivem de modo geral como clandestinos, sempre assustados ao sair à rua, temendo ser deportados a qualquer momento. Ora, isto não é vida. Há quem não possa voltar. Em Londres, tive notícias de uma nordestina analfabeta, tanto em inglês como em português, mas que ganhava muito bem como faxineira. Jamais conseguiria ganhar no Brasil o que ganha na Inglaterra. É pessoa escrava de sua insciência.

Nunca tive grandes ganhos como jornalista. Meus dias de melhor salário foram os de professor universitário. Mas estes não foram meus melhores dias. Quando ganhava menos, me divertia mais. Esta brava gente brasileira que migra para lavar pratos e ofícios similares no estrangeiro não é constituída por brutos que só serviriam de mão-de-obra na construção civil. São pessoas com certo nível de instrução, muitos com curso universitário. O migrante é sempre um homem diferenciado. Quer melhor futuro para si e para os seus.

Mas não me parecem muito inteligentes. O Brasil, apesar dos pesares, apesar de todas minhas restrições, é país onde se pode viver. Penso que um emigrado de Rwanda, Congo ou Sudão, se consegue chegar a país decente, não tem razão mais alguma para voltar. Para o Brasil, dá para voltar. Os exilados de 64, que juravam só voltar ao país de metralhadora em punho e para tomar posse do poder, voltaram sem metralhadora alguma, e muitos chorando.

Imigrante não se engana. Mesmo este país precário em que vivemos ainda atrai migrantes de todos os quadrantes. Eu, que não consigo ver futuro viável para o Brasil, tenho de considerar que o país tem suas virtudes. Ainda há ilhas onde se consegue viver bem. Assim sendo, não consigo entender muito bem esta opção dos lavadores internacionais de pratos, que imploram à Europa ou Estados Unidos o direito a um trabalho servil.