¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, março 11, 2008
 
FALTA DE ASSUNTO



Durante muitos séculos, ao falar de pecado, os teólogos privilegiaram os ditos pecados da carne. Charles Billuart (1685-1757), por exemplo, adaptador da Suma Teológica de Tomás de Aquino ao uso dos tempos, dá em seu Traité des différentes luxures uma prova da minuciosidade dos teólogos a propósito dos pecados contra a natureza:

Há quatro espécies de pecados contranatura:

O ato sexual, para que a geração seja possível, reclama quatro condições:
1º) a conjunção de dois indivíduos;
2º) que todos os dois sejam da mesma natureza específica;
3º) que eles sejam de sexos diferentes;
4º) que a forma de conjunção seja natural.

Há então quatro espécies de pecados contranatura. A primeira, se, se nenhuma conjunção, a polução se produz em conseqüência do prazer sexual; o que é chamado de “immunditia” ou, por outros, “mollities” (impudicícia). A segunda, se ela se produz por conjunção com um indivíduo de outra espécie, por exemplo, um animal ou um demônio, o que é chamado de bestialidade. A terceira se produz pela conjunção com um indivíduo de sexo proibido, isto é, do mesmo sexo, homem com homem, mulher com mulher, o que é chamado de sodomia. A quarta, quando os sexos sendo o que devem ser, o modo natural de conjunção não é observado, de forma que a geração se torna impossível; o que pode acontecer de duas maneiras:

1º) por falta do vaso natural, quando o homem usa o vaso posterior;
2º) por falta da posição natural, quando a mulher se põe sobre o homem, ou quando o homem pega a mulher por trás, mesmo se servindo do vaso natural.


Sim, havia outros pecados. Mas durante séculos – e até hoje – a igreja teve uma preocupação maior com os tais de pecados da carne. Herança de Paulo. “Para evitar toda impudicícia, que cada homem tenha sua mulher e cada mulher seu marido. (...) Se eles não podem conter-se, que se casem, pois é melhor casar do que abrasar-se”.

Paulo sabia das coisas: “As mulheres trocaram as relações naturais por relações contranatura; do mesmo modo, os homens, deixando de lado o uso natural da mulher, passaram a arder de paixão uns pelos outros”. São Jerônimo vai mais longe: “Nada é mais infame que amar uma esposa como uma amante”.

No século XVIII, uma curiosa questão foi lançada aos doutores da Igreja. Tratava-se dos “homens com rabo”, que grandes viajantes como Marco Polo, Struys, ou Carreri haviam situado nas proximidades de Formosa. Esses homens, dizia-se, possuíam abaixo do dorso um apêndice caudal de uma vintena de centímetros, móvel como uma tromba de elefante. Uma delegação foi consultar a um famoso teólogo da época, o padre Sanchez, como resolver este imbróglio:

“Um desses homens com rabo se deitou entre duas mulheres, das quais uma, tendo um clitóris considerável, se ergueu da cabeça aos pés e colocou em pederasta seu clitóris, enquanto que o rabo do insular fornecia sete polegadas ao vaso legítimo. O insular, que era complacente, se deixou fazer e, para ocupar todas suas faculdades, aproximou-se da outra mulher e gozou como a natureza convida”.

Houve ou não pecado? Resposta do padre Sanchez: “Para a primeira, sodomia dupla embora incompleta em seus fins, porque nem o rabo nem o clitóris podendo versar libação, eles em nada operam contra as vias de Deus nem contra o voto da natureza. Quanto à segunda, fornicação simples”.

Estes dados, eu os extraio do excelente La Chair, le diable et le confesseur, de Guy Bechtel. Assim era o pecado, naqueles ditosos tempos: ridículo. Seja como for, os pecados – fossem mortais ou veniais – eram sempre cometidos por pessoas. A punição sobrevinha sobre a pessoa. Se alguém morresse em estado de pecado mortal, ia direto para o inferno. Se morresse em estado de pecado venial, para o purgatório. De onde só sairia com muitas indulgências, que poderiam – por que não? – ser obtidas com pagamentos à Santa Madre Igreja Católica. Quanto mais pagassem os afetos do pecador, mais depressa este sairia do banho-maria entre céu e inferno.

Nesta semana, a Igreja listou o que considera serem os "novos pecados sociais". O elenco foi mencionado pelo arcebispo Gianfranco Girotti em entrevista ao Osservatore Romano, publicação oficial do Vaticano, na edição de domingo passado.

A idéia de pecados sociais não é nova e deriva da dita teologia da libertação. Ao responder quais são esses novos pecados, Girotti, bispo-regente da Penitenzieria Apostolica, listou "várias áreas nas quais encontramos ações pecaminosas" hoje, especificando o que chamou de manipulação genética, o uso e comércio de drogas, a desigualdade social e ações antiecológicas, como poluição.

Em primeiro lugar, a Igreja assume firme posição contra a pesquisa científica, que chama de manipulação genética. Voltamos aos bons tempos de Galileu, quando a Igreja não admitia que a Terra girasse em torno ao Sol. Verdade que quinhentos anos depois da humilhação do cientista, a Igreja pediu desculpas. Precisaremos de mais meio milênio para que estes misóginos vulturinos peçam desculpas pelo que estão fazendo agora? Se antes a Igreja mantinha sua posição contra as pesquisas genéticas, agora dá um passo adiante: considera-as como pecado. Mas pecado é conceito que só concerne a quem acredita na idéia de pecado. Um cientista ateu não peca.

Quanto ao uso e comércio das drogas, isto diz respeito ao Direito. Há vários países em que as drogas leves são liberadas. Se a Igreja quiser considerar seu uso como pecado, bem ou mal está entrando em conflito com o sistema jurídico. Nunca vi muita diferença entre os papas deste Ocidente laico e os aiatolás do Oriente teocrático. Ambos querem, no fundo, dominar o Estado e suas leis.

Mas o melhor vem agora, a desigualdade social e ações antiecológicas, como poluição, consideradas como pecados. Primeira pergunta: quem é o pecador? A sociedade como um todo? O Estado? As empresas? Se assim for, como devem fazer? Ajoelharem-se, a sociedade, o Estado, as empresas, em um confessionário, e confessarem seus pecados? Como seriam punidos? Rezando ave-marias e pais-nossos? Empresa que polui vai para o inferno? Com pessoa jurídica e tudo?

No caso da desigualdade social, quem é o pecador? O homem que trabalha e investe e prospera – aumentando a desigualdade social – , ou o vagabundo que deita na rua – aumentando também a desigualdade social? Como se pune este pecado? Sobre quem recai a punição? Ou deverá a sociedade, simbolicamente, ajoelhar-se em um confessionário e confessar suas culpas a um padreco qualquer?

Quanto à poluição, quem é o pecador? A empresa que polui? Ou seus acionistas? Ou talvez seus operários, que também são cúmplices da poluição? Pessoa jurídica peca? O carro polui. Todo possuidor de carro será um pecador? Todo motorista de ônibus? Toda pessoa que necessita locomover-se peca? É pecador quem tem geladeira? Peca quem fuma? Quando passageiros de um navio jogam plástico nos mares, quem é o pecador? O comandante, responsável pelo cruzeiro? Os tripulantes, cúmplices do comandante? Ou apenas os passageiros?

Falta de assunto do Vaticano. Quer passar por moderninho e repete o mesmo ridículo do padre Sanchez discutindo o rabo do insular enfiado no vaso legítimo.